segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Chico Xavier - de Pedro Leopoldo a Uberaba

"No fim, todos chegaremos aos mesmos resultados, que é a vitória do bem". 
(Chico Xavier)
 
Neste ano que finda hoje, Fernando Portela escreveu, em parceria com o diretor italiano Simone Colombo, roteiros de dois filmes: "O Homem que Comprou o Paraíso" (uma comédia) e "O Fogo de Satã", drama passado no tempo do cangaço, com o mesmo título de um dos livros juvenis do escritor e jornalista, baseado nesta história. 

O documentário sobre Chico Xavier foi o primeiro filme/documentário dirigido por Fernando Portela, e produzido por Caio de Alcântara Machado.
 

domingo, 30 de dezembro de 2012

Por Humberto Werneck, com Fernando Portela

Muito perguntador, o cronista quis saber o que se quer de 2013 - e traz aqui um pouco do que veio nessa rede.
(...) 
O Fernando Portela, também para rimar, revela: "Nunca desejei tanto, como agora, a absoluta normalidade; as delícias da previsibilidade; e que tudo seja, além de simples, trivial".
(....)
Acesse o link da coluna pra ler na íntegra.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

De como se faz jornalismo literário


O ano, 1973. Os repórteres, Cláudio Bojunga e Fernando Portela, do Jornal da Tarde, de São Paulo. Os dois já haviam feito, juntos, uma grande reportagem sobre as fronteiras do Brasil, seguindo, literalmente, o desenho do mapa. Portela saiu do norte e foi para o oeste; Bojunga, viajou do sul ao oeste. Viram, de fato, um Brasil que ninguém conhecia, naquela época. Fernando Portela, aliás, descobriu na viagem as primeiras informações sobre a guerrilha do Araguaia que, anos depois, ele iria contar, numa matéria que fez História.  
Mas, naquele ano de 1973, a preocupação dos dois repórteres era com a idade dos últimos remanescentes do cangaço. Estavam morrendo, todos. Alguém precisaria ouvi-los – e rápido. Dividiram, mais uma vez, a tarefa: Fernando Portela fez a memória de Lampião, com as entrevistas possíveis, do nascimento do famoso cangaceiro até a travessia do São Francisco, quando iniciaram a segunda e última fase da saga bandoleira. Foi nessa segunda fase que Bojunga trabalhou, contando sobretudo a decadência, as primeiras batalhas perdidas, as traições e a morte da maioria dos cangaceiros. Sua entrevista com Dadá, viúva de Corisco, é antológica. 
Na foto acima, Fernando Portela acaba de escapar da morte após ter abordado o senhorzinho da esquerda – o terrível “macaco” Mané Neto.
Quando Portela chegou perto, o velho policial, num reflexo, pegou o revólver que ostenta na cintura e ameaçou apontá-lo para o jornalista.“É imprensa!”, gritou o repórter. “Sou jornalista e vim entrevistar o senhor, o mais famoso matador de cangaceiros”. O “macaco” guardou a arma. E, aliviado, o fotógrafo Josenildo Tenório registrou o encontro. Há controvérsias sobre se foi, de fato, o matador mais famoso, mas o repórter acredita que Mané Neto adorou aquele título, pois deu uma belíssima entrevista. Tanto a reportagem sobre fronteiras quanto a do cangaço acabaram por se transformar em livros, assim como o primeiro relato da guerrilha do Araguaia. Eram tempos de jornalismo literário, quando os leitores procuravam revistas e jornais também pelo prazer da leitura.   

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Jornalismo literário promete decolar no formato digital

Uma tendência se anuncia no mercado editorial, com o acordo fechado essa semana entre a DLD (Distribuidora de Livros Digitais, representa L&PM, Objetiva, Record, Sextante, Rocco, Planeta, Novo Conceito e a canadense Harlequin) e a Amazon e o Google. “Estamos efetivamente à beira do ponto de inflexão do consumo do livro digital no Brasil. Agora ele vai começar a representar uma parcela significativa do mercado”, declarou Roberto Feith, diretor-geral da Objetiva e presidente do conselho da DLD, ao jornal Valor Econômico (SP/ 28.11.2012). E comentou: “(...) a expectativa é de mudanças também no perfil de leitor e, consequentemente, no padrão de consumo, com a ascensão de gêneros como ficção científica e mistério e uma maior oferta de textos como ensaios e grandes reportagens. (...) grandes reportagens sobre temas em destaque no noticiário (...). São textos que precisam de mais espaço do que o disponível em jornais e revistas e de uma publicação mais ágil do que as editoras conseguem. Problemas superados com o livro eletrônico (...). No formato digital, é possível levar esse tipo de obra para o público em um intervalo de algumas semanas ou um mês." 
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Uma oficina sob medida para os novos tempos
Fernando Portela há muitos anos escreve ficção e não ficção (reportagem) quase ao mesmo tempo. Jornalista, foi um dos fundadores do Jornal da Tarde e autor de grandes reportagens da época gloriosa do JT, várias migraram para os livros. Do jornalismo, extraiu inspiração para a ficção e criou inúmeros personagens e histórias carregadas de mistério, delírio, ambigüidade, tragicomédia e realismo. “Eu escrevo a minha vida, que sempre foi muito rica, movimentada, excitante, e não poderia ter havido um curso melhor de humanidades do que conviver com gente, de toda cor e cheiro, de línguas diferentes, e de ter-me misturado com tantos santos, crápulas e pulhas. Enfim, eu escrevo a experiência acumulada”, diz. 

Pois foi a partir desta experiência de mais de 40 anos de campo e imaginação que Fernando Portela criou a sua OFICINA de JORNALISMO LITERÁRIO e REPORTAGEM GERAL. São dois módulos, um de quatro meses, com aulas semanais de duas horas, que pode ser cursado em São Paulo (cidade de residência do escritor/jornalista) e um expresso, de quatro ou cinco dias, que Portela levará, a partir de 2013, a diversas cidades brasileiras. A ascensão do formato digital no Brasil deverá representar um importante canal de revelação de novos escritores/repórteres e, como já se disse em relação às oficinas literárias de ficção, se o talento não se transmite em sala de aula, como um vírus de gripe, o caminho mais curto para aprender a organizar as palavras, no entanto, está nas oficinas de escrita.
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Os mestres
Editor de uma verdadeira legião de repórteres, Portela comenta que sempre disse às suas equipes: “Leiam poesia, de qualquer um e em qualquer língua; e leiam autores como Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues para assimilar fluidez de texto”.  O escritor/jornalista inicia sua oficina com a apresentação do conceito de reportagem geral e jornalismo literário (com referências, por exemplo, a Truman Capote e Gay Talese, sem descartar São Matheus, o evangelista, “repórter de texto sofisticado”, e os mestres da antiga revista brasileira Realidade). Depois faz com que os alunos realmente pratiquem esse tipo de jornalismo. “Quando diferencio jornalismo literário de reportagem, estou dizendo que jornalismo literário tem mais a ver com o acabamento, o escrever; mas não adianta escrever bem se não souber colher o material jornalístico necessário”, revela, passando à próxima etapa: as técnicas de reportagem. 

Todos os alunos terão tarefas a executar na rua porque as oficinas não são teóricas, mas extremamente práticas. “Meu terreno é o dia a dia, o erro, a procura, a humildade. Você só escreve bem se passar por todas essas provas. O aluno escreverá rigorosamente o que colheu,  por mais que lhe pareça ‘pobre’. Toda realidade é rica. Eu mesmo escrevi páginas sobre o suposto nada, com muito sucesso, a ponto de virar livro, junto a outras matérias”, afirma, comentando que o aluno aprenderá na vivência de rua e na assimilação de estilos. “Não é possível confundir jornalismo literário com ficção. Grandes escritores brasileiros, por exemplo, nos servem como forma: um leitor de jornal dormiria se algum assunto fosse tratado com o ritmo de boa parte deles. Quer dizer, as frases são curtas, não há a mínima gordura, mas também não há a agilidade necessária à sedução do leitor de coisa rápida, como jornal ou revista.”

Mesmo no módulo da oficina de quatro dias, Portela esclarece que a coleta de material não é prejudicada pelo tempo expresso. “Os alunos viverão cerca de vinte e quatro horas no papel de ‘repórteres’ – um tempo absurdo, de tão longo, para repórteres de verdade, acostumados a colher dados e escrever em poucas horas. A partir das experiências individuais, daremos as noções de coleta de dados, suas dificuldades e limitações”, explica.  Ele analisará o material e as soluções de texto (com ampla discussão sobre técnicas) e levará todos os trabalhos para leitura e exame. No último dia, cada texto será analisado e discutido em classe. “Apesar do tempo curto, iniciarei um trabalho de preparação de repórteres iniciantes, algo que fiz durante boa parte da vida. É importante esclarecer que o candidato pode ter qualquer idade. Repórteres não têm idade”, afirma. Os trabalhos serão devolvidos aos alunos com as sugestões de correções – se necessárias. Fechando a Oficina Expressa, será sugerida a criação de um blog para expor os trabalhos.


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De ficção e de realidade
Fernando Portela é autor de textos que são uma espécie de modelo de jornalismo literário, como a reportagem do translado dos ossos de D. Pedro I ao Brasil, em 1972. “Fiquei em um navio de luxo, o Funchal, durante 12 dias de luto e escrevi literalmente sobre o nada.  Ou melhor, joguei o ‘veneno’ que pude em textos aparentemente fúteis sobre uma viagem ridícula, entre duas ditaduras, que poderia ter sido feita em nove horas de avião”, comenta.
O interesse maior do escritor/jornalista sempre foi o uso das diferenças de linguagem, “das possibilidades de cambiar, de experimentar, de misturá-las, ou de usar atributos de umas para aperfeiçoar pontualmente outras, essas coisas”, diz. Sempre experimentando, procurando inovar, Portela fez reportagens que são contos, sem que, em momento algum, tenha mudado uma frase de um entrevistado para “melhorar” o texto. “O fim do cinema no interior de São Paulo, matéria que escrevi para o JT, é um conto”, comenta. No caso, em Vera Cruz (o repórter escolheu a cidade a dedo). É linguagem literária, construção típica de ficção, e todos os personagens reais. “Claro que meu jeito de ver o mundo dava o tom. Lembro-me que, ao descrever o prédio estropiado do velho cinema ‘morto’, eu usava a expressão ‘cimento-ectoplasma’. Os leitores gostavam muito desse jeito de fazer jornal. Escreviam cartas apoiando, ou o trabalho em si ou o atrevimento de fazê-lo”.

Da reportagem policial, Portela também extraiu muita ficção e em vários contos abordou a violência, até depurar a linguagem. “Os meus primeiros livros, segundo algumas opiniões, eram quase insuportáveis, de tão violentos, pingavam sangue. Ou seja, o narrador estava chocado. Com o tempo, acredito, essa visão foi-se depurando e talvez eu tenha começado a associar criminalidade com o cotidiano do Brasil, a entendê-la como ‘cultura’. O criminoso passou a ter, primeiro, cara, depois, sentimentos. Minhas histórias, hoje, mostram não exatamente uma visão tragicômica da violência, mas uma visão mais humana (que inclui a tragicomédia) de uma sociedade onde a violência se enraizou”. 

Para ler mais:
Jornal Valor Econômico (28.11.2012) Livro digital estimula novos gêneros e outro perfil de leitor
Jornal Zero Hora (30.11.2012) - Chegada de leitores e livrarias digitais esquenta briga de e-books


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OLINDA

A luz.
Ah, esta luz de Olinda, a minha Olinda. E pensar que há décadas eu abandonei esta luz e as cores da sua consequência para a aventura paulistana... Em todos esses anos, uma pergunta feita por tios, primos, e agora sobrinhos, me traz um daqueles desconfortos filosóficos de que a gente foge a vida inteira: "Mas por que diabos você saiu daqui?"
Respondam, meus botões: por que,  mesmo? Como é possível descartar, conscientemente, essa visão enternecida, transcendental, de mangueiras, coqueiros, telhados seculares e o mar-lá-longe, a partir da colina onde se erguem a igreja de Santa Gertrudes e a escola do mesmo nome (a "academia")?
Como foi possível abandonar essa paisagem muito mais adequada ao êxtase dos santos, à glória dos eleitos? Uma paisagem de tal encantamento que, em geral, um suspiro do visitante a descreve melhor do que estas palavras, do que mil palavras, ou fotos, ou ainda as gravações de ingênuas filmadoras eletrônicas (é verdade: há gente que tenta filmar isto). Seria mesmo muita pretensão da tecnologia querer captar essa luz encantada que pode levar a um delírio místico.
 Cuidado, sensitivos, cuidado com Olinda. Não é uma cidade nem um estado de espírito. É simplesmente um dos Portais Angélicos, um daqueles points do nosso devassado Planeta que os Mensageiros Alados (eles próprios energias luminosas,  sutis), escolheram como porto  por estarem mais próximos da sua divina natureza. (Há outras dessas estações no mundo, como Assis, na Itália; Toledo, na Espanha. São poucas.)


 Mas, meu senhor, minha senhora, meu jovem:  tenham cuidado com Olinda. Contenham seus sentimentos. Nada de choros, se bem que a gente entende que a História e aquele mar são comoventes. É claro que suas almas delicadas não vão escapar da sedução de sacadas e balcões dos sobrados do século XVI, marcos das desigualdades sociais que tanto macularam essa primeira capital da Capitania, desde sua fundação portuguesa, em 1535.
Radicalmente nobre, a cidade se especializou, desde sempre, em charme, exuberância e ostentação, como a mania de se usar puxadores de ouro e dobradiças de prata nas portas das casas da época. Cidade que, nos seus anos de glória, costumava chamar de "povo", com total naturalidade, o lugarejo à beira do porto que se transformaria na burguesa Recife.
Diziam os olindenses, com simpática tolerância: "Vamos dar uma volta no "povo"? Hoje, essa nobreza se manifesta de outras formas. A população de Olinda, por força da herança majestosa, trata o visitante com uma hospitalidade que somente dono de palácio pode se dar ao luxo. São 350 mil a nos receber com uma alegria, uma jovialidade que podem mesmo parecer sem motivo, sobretudo para quem vem do estresse. A simpatia surge dos lendários meninos que sabem de cor a História da cidade, com detalhes de cada rua e prédio; mas pessoa qualquer a quem você peça informação fará o possível para torná-lo feliz. Se for perto do Carnaval, como agora, esse impulso aumenta.
 O Carnaval é uma loucura em Olinda - na inteira acepção da palavra. Um milhão, setecentas mil, quinhentas, sei lá, um monte de gente sobe e desce as ladeiras, a pular e a gritar,  embalado pelo frevo tocado ao vivo (frevo, música delirante, obsessiva, espécie de desabafo das bandas marciais). E o olindense não admite carros de som. Ameaça depredá-los, até, quando insistem.
Há uma explosão de criatividade nas fantasias, quase sempre críticas e bem-humoradas, exibindo das piadas escrachadas às reflexivas. Pequenos blocos são criados a qualquer pretexto, como o "Bloco da Porta", que há anos desfila pelo Carnaval olindense e nasceu do esforço de um free-lancer desempregado que decidiu trabalhar no carnaval. Estava carregando uma porta para consertar quando notou que uma pequena multidão o seguia, dançando. Lógico, ele aderiu. Pode-se dizer mesmo que o Carnaval é o momento mais democrático da cidade. Dançam, juntos, o rico, o pobre, o classe média. Fazem rodas e dão-se as mãos. Ficam todos iguais: todos nobres.
 A nobreza é atávica. Porque todo mundo mora em um palácio. Não adianta a afirmação dos famosos pintores João Câmara e Delano, amigos de décadas, vizinhos da rua de São Francisco, ocupando, cada um, seu  casarão histórico. Eles dizem, quase em côro, que não foi a energia de Olinda que atraiu os artistas à cidade. (Como se sabe, Olinda possui a maior concentração brasileira de artista por metro quadrado.) Os artistas teriam vindo, na década de 60, por causa das melhores condições ecônomico-financeiras oferecidas. Muito espaço nos quintais, casas tão grandes como baratas. Aí foi juntando artista. Na década seguinte, artista morar em Olinda já tinha virado moda. Depois vieram os de outros estados. Mais uma década e estrangeiros também aportaram no Montparnasse tropical. Não adianta esse tipo de explicação. Deixe-se ao Recife a racionalidade. Aqueles dois vieram para cá atraídos pelo sortilégio maior que toca os escolhidos, os talentosos. E os resgata para os Campos do Senhor. Olinda é isto: magia e emoção - cândida, genuína. Hoje, Delano e João Câmara não teriam outro lugar para viver. "É, a gente já acostumou..."- diz Câmara, deitado numa rede, saboreando um suco de manga do seu quintal ao lado da mulher, Maria Adelaide. "Aqui é provinciano, calmo, eu saio na rua de bermuda e sandália japonesa", completa o outro artista, incomodado por considerar, mesmo teoricamente, a idéia de sair da cidade.
 Mas você vai entender melhor tudo isso quando assimilar o vermelho-vivo da casa que - dizem - foi de Maurício de Nassau, o holandês, o "recifense" que quase destruiu Olinda, na invasão de 1630.
Não deixe de observar bem o caimento oriental de alguns telhados, o piso de época, o Mosteiro de São Bento, os museus de Arte Sacra e de Arte Contemporânea, a Igreja do Carmo e a imponente Catedral da Sé.


São 22 igrejas e 11 capelas. Se quiser uma lembrança, tudo bem, entre no Mercado da Ribeira e compre o artesanato muito simples - simples demais, você pode achar, antigamente era mais caprichado - produzido por mais dos 100 artistas populares que invadem a cidade; além deles há cerca de 5O pintores,  dos quais boa parte é conhecida nacional e internacionalmente. Se quiser comprar um dos seus quadros, basta perguntar onde moram, bater palmas na porta e entrar.
Quando você tiver fome, a oferta é imensa, sobretudo a de pequenos restaurantes de comida caseira-típica. Se fosse você, experimentaria o Oficina do Sabor, número 335 da rua do Amparo. Saiu até no New York Times. Peça a "Charque à moda do chefe", que vale a pena.
No mais, pensando bem, foi temeridade minha escrever tanto sobre esta cidade. Sinto-me diante daquelas pessoas que, quando descobrem que nasci em Olinda, fazem a analogia automática: "Olinda: como Ouro Preto, não é?"
"Mais ou menos", respondo, consciente da impossibilidade de descrever minha cidade. "Ouro Preto... com mar."
Digo mar como se a palavra tivesse muitas sílabas. De certa maneira tem: ou seria um simples mar a luz coagulada à minha frente, que se faz verde, transmudando-se em azul profundo à altura dos arrecifes (olhe, surgiu uma vela branca, ao sul), onde chegam a ser comuns as ocorrências em violeta?
É mar, apenas, ou puro devaneio dos sentidos, aquilo que surge por trás das árvores e das duas torres da Igreja do Carmo? Se fosse somente mar, e nada mais do que mar, daria vontade de chorar, ao contemplá-lo?

Texto publicado na extinta revista Exame Vip.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Lúcida embriaguez da palavra

Entrevista de Fernando Portela para o Jornal do Commercio, de Recife.
Sobre o livro Memórias Embriagadas.
(09.03.2009)
  

Por Marcelo Pereira




Como era sua rotina de trabalho na escrita dos contos? Já se deu por satisfeito em seu projeto literário ou continua no mesmo ritmo? Que unidade você buscou na triologia?
Jamais tinha feito isso antes: obrigar-me a escrever de qualquer jeito. Mas precisava acabar com o mito, dentro de mim mesmo, do “melhor momento” ou “inspiração”. Escrever qualquer coisa é só trabalho. Não busquei uma unidade porque sou dispersivo, múltiplo e levemente esquizofrênico. Se há unidade, é na linguagem. Como diz Humberto Werneck que apresentou um dos meus livros, eu escrevo “fácil”, mas só na forma.
Vou falar da vida real e da vida sonhada.
Hoje, passo o dia editando livros de três coleções. Eventualmente, à noite, escrevo alguma coisa, na verdade reescrevo, pois estou preparando um livro "novo", a partir da compilação de dois livros antigos, de contos. Passo cerca de dez horas diante do computador.
A vida sonhada é contratar um editor profissional, passar a execução pra ele e escrever ficção durante todo esse tempo, ou um pouco menos, para conseguir ler alguma coisa.
Mas não estou me queixando, não me queixo de nada.
O projeto da trilogia acabou. Foram 150 histórias curtas.  


Algumas dessas histórias foram escritas embriagadas? Ou são frutos de uma lucidez alucinante? 
Dentro das redações de jornal, onde trabalhei boa parte da vida, sempre me fascinaram os caras que conseguiam escrever bêbados ou “tocados”. Porque eu não consigo. Nem com um cálice de vinho. A lucidez me é fundamental para entrar no meu porre particular. Descobri, há algum tempo, que escrever, pra mim, é o mesmo que meditar. Entro em alfa.  

Você faz anotações das histórias antes de começar a escrevê-las?
Nunca planejei nada. Sigo o pensamento sufi: “Planejar é repetir o que você fez no passado, é uma idéia morta. A vida é como um pássaro no céu: voa, não deixa vestígios, e o céu continua tão vazio como antes. Seja como um pássaro, mova-se de acordo com o que o momento lhe solicitar, com o que sua inteligência disser naquele instante”.
O que acontece é que, às vezes, a idéia genérica de uma história vem junto com seu desenvolvimento, um certo roteiro. Mas não me lembro de ter seguido, jamais, a proposta inicialmente pensada. Mudo tudo.

De onde vêm tantos temas?
Da dispersão pessoal, da vontade de entrar em todo lugar e em todas as cabeças, de uma curiosidade mórbida, da função de repórter que sempre exerci. 

Como você define seu estilo de leitura? É um leitor compulsivo? O que mais gosta de ler? Reportagens jornalísticas, ficção, ensaios?
Esta é sempre a pergunta mais difícil. Porque leio tudo: genial, ruim, mais ou menos. Leio os reconhecidos, esquecidos e odiados. Um dia desses, um repórter de rádio me perguntou, ao vivo, qual o livro mais importante da minha vida. Eu respondi, com honestidade, “A Doutrina Secreta” (de Helena  Blavatsky) e foi um grande constrangimento porque o rapaz não o conhecia. Não sei se ele tinha obrigação ou não disso, mas nunca deixarei de dizer o que penso – o que, hoje, é o cúmulo do politicamente incorreto. O antimarketing. Mas o que me provoca orgasmos literários é poesia. De qualquer tempo e escola.

Como conciliar a literatura com os outros afazeres profissionais?
Usar os afazeres como matéria prima para histórias. Sempre fiz isso.
A violência está sempre pronta para explodir em seus contos. Isto é uma estratégia do narrador ou reflete a violência própria do país?
É um reflexo deste pobre país, violento sob todas as formas, das quais a social é a mais complexa. Somos uma imensa máfia. Temos de resolver isso com urgência.

Você não consegue segurar os impulsos dos seus personagens, que no destempero abrem o verbo e chamam palavrão. Isto é uma forma de catarse pessoal?
Acredito que seja, ainda, um reflexo da violência do meio ambiente. Tenho contos inteiros sem um único palavrão, quando retrato o “outro lado” do Brasil, o das pessoas comuns, ingênuas, incorruptíveis. O país em que gostaria de viver.  

Já pensou em se aventurar a algum projeto de mais longo fôlego, como um romance? 
Já escrevi novelas juvenis. Romance, acho que vou começar a escrever um. Mas tenho medo de sucumbir à minha própria dispersão.

Qual o seu projeto literário atual?
Estou juntando histórias dos meus primeiros livros, “Leonora Premiada” e “Querido Senhor Assassino”, ambos da década de 70, para fazer um volume só. Já tenho até o título (de uma história passada no Recife profundo): “O Rock dos Miseráveis”. 

Suas histórias não possuem nenhuma localização geográfica específica, precisa. Há apenas indicações: campo, cidade, subúrbio etc. Por quê?
Porque eu sou assim, impreciso e inespecífico. Mas tenho histórias passadas no sul do Brasil, por exemplo, que dá todas as dicas para o leitor. Numa delas (“Aleluia”, do livro “Allegro”), a personagem chama-se Don Antônio – assim mesmo, com “n” - e cria ovelhas de lã.

O fenômeno sobrenatural (místico e, às vezes, de malassombro e etês) está presente em alguns contos, às vezes se constituindo num realismo fantástico ou maravilhoso. Como você encara o fenômeno sobrenatural e a espiritualidade?
Acredito piamente que a brincadeira não acaba aqui, nesta vida. Assim, há um extenso (e maravilhoso) campo intermediário entre as realidades física e incorpórea, ou espiritual. Escrevo muito sobre isso.

Você coloca nas palavras de um personagem uma crítica às revistas semanais e ao governo. A literatura é uma forma de crítica social e desabafo?
Sou um “filho” da ditadura militar que deixou o Recife em 1965 pela dificuldade de conviver com as travas culturais. Continuo com as mesmas aspirações de estudante: justiça social, democracia e ética. Profundamente, tudo o que aconteceu de progresso social dos anos 60 pra cá é paliativo. Óbulo, ajuda, socorro, mãozinha, pra não dizer esmola. A literatura ajuda na medida em que mostra espontaneamente uma realidade tão dolorosa que nós todos tendemos a racionalizar. Não acredite jamais em quem lhe diga: “Avançamos muito”. Porque continuamos na mais absoluta e pastosa merda social. 

Não há muita desesperança em seus contos? 
Há, sem dúvida. Mas quero ser desmentido, desautorizado, negado. Espero que isso aconteça, um dia.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O talento de Fernando Portela

Por Luthero Maynard 
Livro de contos sintetiza a arte da narrativa curta, cujas palavras são empregadas com a precisão de jornalista experimentado, a sensibilidade, o estilo e o humor de autor clássico e a imaginação de artista das palavras.
Fernando Portela é mestre reconhecido em dois ofícios dos mais difíceis de se ganhar notoriedade consistente por mais de 24 horas: jornalismo e literatura. No jornalismo, assinou reportagens hoje referenciais para os estudantes das (mal) chamadas faculdades de comunicação social. É o caso das reportagens que revelaram para o público a guerrilha do Araguaia (1979), sistematicamente ocultada da opinião pública pela ditadura militar então no poder.
Matérias que deram origem ao livro “Guerra de Guerrilhas no Brasil - A Saga do Araguaia”, modelo do que mais bem produziu o jornalismo investigativo (e, raro, raríssimo, com sabor literário) no país. Na literatura, Fernando Portela é refinado autor de contos para jovens e adultos — inclusive um livro infantil —, livros paradidáticos e romances.
Com “Allegro - Tragicomédias, Delírios, Realismo, Ambigüidades” (Editora Terceiro Nome, prefácio de Humberto Werneck, outro mestre, 416 págs., R$ 38), Fernando Portela supera-se na arte da narrativa curta, cujas palavras são empregadas com a precisão de jornalista experimentado, a sensibilidade, o estilo e o humor de autor clássico e a imaginação delirante de artista das palavras.
“Alegro” reúne 91 contos — pode-se assim dizer, pois não se prendem à estrutura convencional do gênero (se é que existe) — que vagueiam, sem pudor, por todos os caminhos oferecidos pela escrita literária, tendo em comum apenas a excelência do estilo. Por exemplo, “Violentadas”, o conto de abertura, é o anticlímax (de humor demencial) do sentimento de medo produzido pela violência urbana. Três amigas, Ermínia, Cleíse e Maria Rios são rendidas no apartamento por um (falso?) encanador, o Gumercindo. Ele não quer dinheiro ou violentá-las: apenas vê-las peladas. Depois de uma improvisada (e deliciosa, também para o leitor) sessão de strip-tease, Gumercindo — já tratado carinhosamente de Gu pelas garotas — vai embora. E volta na noite seguinte e nas seguintes. A reflexão final de Ermínia é antológica: “O Gu, também, coitado, é um carente; no fundo, uma boa pessoa. Não vamos chamá-lo de amigo, mas... pra tarado, é dos mais discretos.” Resistir, quem há de? Corra comprar e se deleitar.

(Resenha publicada em 08.07.2003, no jornal O Diário de S. Paulo)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

BRENNAND

Texto escrito, em 2002, por Fernando Portela

Vênus e eu nos olhamos, apaixonadamente, durante mais de vinte anos. A pele queimada do seu corpo nu, os cabelos femininamente longos, até o quadril, a mão esquerda cobrindo o sexo, sem pudor algum, apenas em função do gesto harmonioso - Vênus tem sido para mim, mais do que uma paixão, uma lembrança perene da mística de Francisco Brennand.
Vênus me foi presenteada no começo dos anos 70, na única vez em que estive com o artista, e já nem lembro bem qual o assunto que me levou até o Templo, na época ainda em construção. Uma reportagem qualquer, coisas do dia-a-dia de um jornal. Nem sei se queria falar com o empresário, produtor de cerâmicas para pisos e forrações, ou com o pintor genial (nesse tempo ele era mais conhecido como pintor).
“Gosta de gravuras?”, perguntou Brennand (como se a mídia fosse mais importante).
“Não se incomode.”
Um homem muito alto, quase magro, com uma voz mansa e gentil. Não usava as longas barbas de hoje. Encaminhou-se a uma das mesas compridas, de madeira rústica, apoiada em cavaletes, no meio do imenso galpão de olaria (sempre, na minha memória, aquele espaço sobreviveu como um recinto da Idade Média). Abriu com cuidado um pacote empoeirado e de lá tirou uma das poucas cópias da minha amada.
“Para você se lembrar daqui, deste lugar”, ele disse.
Hoje eu entendo que não estava sendo apenas gentil com o jornalista. Sua missão nesta vida é fazer com que as pessoas não esqueçam daquele lugar.
Pois, já nos anos 70, Brennand não teria por que se preocupar com isso.

Na verdade, o pintor, ceramista, escultor já era, havia muito tempo, um ídolo ou, muito mais do que isso, um Mahatma moderno, guru e mestre - referência luminosa - de toda uma juventude às vésperas do golpe militar de 64. 
Ele adquiriu essa condição mítica e quase mística ainda durante o primeiro governo Arraes, quando, meses antes do golpe, assumiu a chefia da Casa Civil do Governo. Era, além de artista, o empresário moderno, de acintosa juventude; intelectual, nacionalista, socialista, tropical e talentoso, e tão visceralmente comprometido, a exemplo dos estudantes que éramos,  com o sonho de um país igualitário e moreno.
Sua pintura de frutas e folhas, da cor mesmo dos sonhos pós-juvenis, já havia invadido os espaços das artes, até no sudeste dos supercríticos, e não poderia haver, no nosso Estado revolucionário, melhor representante da nova mentalidade que destruiria os usineiros despóticos e demais representantes das Forças do Mal. 
Miguel Arraes, com toda aquela esperteza adquirida na origem pessedista, plantara Brennand à frente do seu governo popular como uma cunha, charmosa e delicada porém, para fender eventuais recaídas da elite empresarial mais jovem e moderna, que se contrapunha, com alguma timidez, ainda, ao eterno poder dos usineiros arrogantes.
Em nenhum momento, falava-se da origem porventura deífica do artista-empresário, de tão nobre; da sua realidade de moço nascido em palácio, com raízes fincadas na glória da resistência ao invasor holandês; e isso sempre pelas raízes da mãe - sua avó chamava-se (vá contando) Francisca de Paula Cavalcanti de Albuquerque Lacerda de Almeida Brennand -, e entre seus ascendentes figurava ninguém menos do que o Barão de Ipojuca e o Conde da Boa Vista.
No Palácio das Princesas, sede do governo pernambucano, nos idos de 64, não havia a menor chance de que um assunto dessa natureza virasse conversa. Quem reinava àquela época era mesmo o povo, não fosse o Recife uma cidade moldada em massas populares, em contraposição à vizinha Olinda, às vezes vista como simples memória da nobreza ancestral.
Jamais se ouviria falar, naquele tempo, que o irresistível Chefe da Casa Civil do governo Arraes, um Apolo sedutor em si mesmo, ídolo de boa parte das mulheres em idade de adoração, ocupava, com seus ascendentes e descendentes, terras sagradas que haviam pertencido a André Vidal de Negreiros, herói máximo da epopéia pernambucana contra o invasor holandês.
Na verdade, o povo de Arraes parecia identificar-se mais com os próprios holandeses, invadindo o espaço da descendência portuguesa conservadora, convertida em donos de engenhos e usinas.
Brennand poderia - por que não? - estar com o povo, ou não seria o seu “Brennand” a identidade relativamente modesta da família inglesa que imigrara para o Brasil em 1820? Aliás, somente alguém ligado ao povo poderia ter a idéia de transformar a antiga Casa de Detenção, um depósito constrangedor de presos, na maravilhosa Casa de Cultura do Recife, hoje parada obrigatória de quem visita a cidade.
Brennand ficou muito pouco tempo, alguns meses, naquele cargo honorífico, pois o sonho socialista se desfez e - já por força da mística, quem sabe - quase nada aconteceu com ele, quando os milicos tomaram o poder. Os jovens estudantes se dispersaram, no entanto, ou fugiram, ou morreram em guerrilhas ou se humilharam aos vitoriosos.  O Brasil alegre e mulato, de cores e frutos como um mural do Mahatma, se desfizera da noite para o dia. Ficaram algumas daquelas belas paredes como referência, iluminando a cidade do Recife: o mural do aeroporto dos Guararapes e o do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Serviços de gênio.
Os deuses, como se vê, não queriam um Brennand político. A volta compulsória à velha olaria de muitos galpões, ou a fábrica de azulejos que a família mantinha desde 1954, fez com que ele, assumindo a parte estropiada do terreno, fundasse, em 1971, a Oficina Cerâmica Francisco Brennand, também conhecida como O Templo. O Estado de Pernambuco, e o Recife em particular, ganhavam mais uma glória para expor diante de todos os futuros.
  
Muitos anos depois, no final dos anos 90, voltei ao Templo em várias ocasiões. Dos anos 80 em diante, o artista iria se revelando como ceramista, escultor. Em algumas dessas visitas levei comigo executivos estrangeiros - sentia prazer em observar-lhes o espanto-deslumbramento-êxtase-arrebatamento diante dos assombros que se lhes apresentavam, adquirindo vida pulsante e qualificando seus delírios, pelo resto de suas vidas. Acabei escrevendo, como proposta de um roteiro do Recife, o seguinte trecho:

“Mas, se sua curiosidade (caro turista) é sócio-antropológica, está bem, vá em frente, ou melhor, siga para oeste em busca de bairros populares - pela avenida Caxangá, por exemplo. Em meio ao dia-a-dia sem brilho das pessoas, naqueles rincões tão brasileiros, você acabará chegando a um sonho tropical. Fica no popularíssimo e arborizado - como toda a cidade, aliás - bairro da Várzea. Chama-se, oficialmente,  Oficina Cerâmica Francisco Brennand S.A. Oficialmente, porque a empresa é apenas pretexto para apresentar ao mundo (e como o mundo a visita!) o Templo de uma civilização deliciosamente ímpia, e ao mesmo tempo mística, e também erótica, hedonista - magia pura. É a mais obrigatória das visitas do Recife, longe da praia. Não perca. Não perca mesmo. Sobretudo se você dá valor aos que transformam seus sonhos em matéria palpável, em arte. E consubstanciam, aqui na Terra, os desejos fluidos do deus Pã. Mestre Francisco Brennand, o pintor e ceramista, é o criador desse universo absolutamente singular. Ele, o verdadeiro Mago do Id, mantém 2.600 esculturas no espaço que tornou encantado - Galápagos, Atlântida, ruína asteca do ano 3.000.
Há quem veja com insistência, no saudável delírio daquelas peças, uma recorrente inspiração fálica... Haveria peixes-falos, abutres-falos, sapos-falos, soldados-falos e até um falo-falo convivendo em paz no átrio monumental da cidadela, onde luxuriantes cisnes negros, esses sim, biologicamente vivos, chegam a chocar de tão previsíveis.
O bom humor, aliás, permeia toda a obra genial de Brennand, espalhada pelos espaços enfeitiçados da Oficina. Ouvem-se elogios e expressões atônitas em várias línguas. E os estrangeiros têm dificuldade de aceitar que nenhuma daquelas peças esteja à venda. Brennand, raro exemplo de harmonia entre os talentos artístico e empresarial, faz com que suas quimeras sejam sustentadas pelas cerâmicas decoradas que comercializa em todo o País. Mais do que uma atração da cidade, a Oficina pode representar o acordo final entre os vários Recifes, no que têm de invenção e praticidade, trabalho e gozo, matéria e transcendência - a dialética entre a consciência da História e o impulso brutal da Esperança.”

Releio agora e percebo o quanto fui superficial e equivocado. É impossível descrever O Templo e a obra de Brennand. Dezenas de críticos, poetas, intelectuais, jornalistas - no mundo todo - já tentaram. O próprio Brennand experimentou uma ou outra auto-definição (“esta é a minha carnificina”; “eu sou o Sade que deu certo”), mas palavras, quando dirigidas àquelas exaltações do espírito, de nada valem.
“Erótico”, eu escrevi. Imagina: Brennand (hoje parece claro, cristalino) é o antierótico. Os falos, vulvas, testículos e úteros nascem da Dor do Mundo. Das chagas dos mendigos à porta da Capela Dourada, no centro do Recife; das prostitutas imundas, usando minissaia muito antes de Mary Quant, na antiga rua da Guia. Das multidões deserdadas e dos sertanejos comendo rato assado para sobreviver à seca.
De qualquer maneira, Brennand é para ser visto ao vivo - descrições, já disse, são insuficientes e falsas.
E o certo é que, a partir do momento em que você transpuser os portais do Templo, operar-se-á uma revolução no seu jeito de encarar a Arte - e a vida enquanto contemplação do mundo.   Arquétipos, sombras, ancestralidades, anseios fugidios, depressões, tudo o que for inconfessável emergirá aos borbotões da sua pobre alma - e você não mais será o mesmo espectador. Dependendo de como encara a idéia do “ovo primordial”, da sua origem neste planeta, essa perturbação poderá ser bastante escura - mas também poderá ser leve, até; só que haja terapia para equacioná-la! Nem tente.
  
Não tenho dúvida; você também não tenha dúvida: Francisco Brennand, 75 anos, é hoje o mais importante e criativo artista visual deste país. Um demiurgo? Talvez, na medida em que os Anjos se aprimoram na faina humana até atingirem a excelência do insight. Brennand é só insight, só intuição. Usa registros eruditos, sendo às vezes didático, provavelmente para não enlouquecer. Ele precisa nominar suas obras de “Lilith”, “Hidra”,  “Hércules”, “Hália” - além da amantíssima Vênus, a minha e todas as suas irmãs - , como única possibilidade de se ater à Terra e não transportar-se de vez aos espaços inefáveis.
Atrás dele, um coro de estudiosos continuará discutindo se sua poesia (por que não chamar de poesia o barro trabalhado a ferro e fogo?) é regional ou universal, se ele é um artista dos trópicos brasileiros ou das galáxias.
Hoje, não tenho a menor dúvida de que Brennand sobreveio de uma outra esfera. Como todos nós, talvez. A diferença é que ele nos mostra o que acontece por lá.   

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ANJOS VOAM


Lá estão os meus Pastores Alemães Brancos, brincando, sobre a colina.
Muitas vezes tenho refletido sobre sua transcendência, olhando-os assim, de longe. E acabei me convencendo de que ali não estão simples animais, ainda que cães, esses bichos sagrados, superiores, guardiães fiéis da nossa frágil humanidade, desde as cavernas. Os Pastores Alemães Brancos vão muito além desse conceito. 
Ali se veem símbolos eternos. O da amizade incondicional, por exemplo. Porque um Pastor Alemão Branco é um amigo que, além de morrer por nós, defendendo-nos, eleva essa amizade à condição da cumplicidade: não só entende as nossas angústias, como nos aponta as saídas. Basta conversar com eles. Quem possui um, entende perfeitamente o que digo. Experimente você também. Conte-lhe seus problemas. Todos. As respostas surgem, inequívocas, por meio de olhos doces que leem a alma; seu corpo esguio, charmoso, vai-se aconchegando às suas pernas e, em pouco tempo, você estará envolvido em um campo magnético propício aos insights, clarividências, iluminações. As respostas às suas angústias.
(A cor branca, é claro, tem tudo a ver com isso. O branco é a soma das sete cores básicas, e a soma simboliza o uno enquanto divindade. Se você imaginar, simbolicamente, que as cores são correntes vivas, energias diversificadas, conclui que a soma de todas elas só pode levar à luz divina da unidade – pureza celestial na sua forma mais complexa. Místico demais? Nem tanto: quando se fala de Pastores Alemães Brancos está-se tratando de um tema espiritual. É o que os próprios cães sugerem.)
Outra qualidade que insisto em destacar no Pastor Alemão Branco é o seu caráter incorruptível. Há, rodando na internet, um texto de autor desconhecido que fala de características especiais dos cães em geral, insinuando que deveríamos copiá-las. Todos os cães têm, realmente, aquelas qualidades, mas o Pastor Alemão Branco eleva-as a formas espiritualizadas. Por exemplo: ele jamais esconde na aparência o que realmente é; pratica a obediência, se isso for necessário, mas deixa claro quando percebe a invasão do seu território; e evita agredir, morder, se apenas um rosnado resolver o assunto.
E, sobretudo (ainda citando aquele texto), o Pastor Alemão Branco costuma sublimar o momento em que encontra seu dono num dia ruim: aí ele fica em silêncio, deita-se próximo e, gentilmente, tenta agradá-lo.
Há muitas outras referências transcendentais relacionadas a esse animal inigualável, que, aliás, eu nunca vi exatamente como um cão, mas como um extraterrestre. Não sei se a incidência da luz é maior no seu pelo ou na sua alma; talvez nos dois, pois segundo o Livro do Apocalipse, o branco é a cor das vestes daqueles que são realmente puros.
É por isso que não posso deixar de ver, naquela colina, os meus Pastores Alemães Brancos como seres transfigurados. Estados celestes. Sinônimos de leveza e de expansão. De equilíbrio. A cor branca, vocês sabem, amplia os espaços, espraiando-se ao infinito. Não sofre impedimento nem fronteira. O branco não está na terra nem no céu: o branco é a integração. 
Quando você tiver um Pastor Alemão Branco, vai entender melhor tudo isso que lhe digo. E nem dará muita importância a um fenômeno próprio dessa raça: quando ele trota, permanece milésimos de segundo suspenso no ar – como se ensaiasse um voo. Aliás, se ele voar, você também não dará a mínima: quem vai achar estranho que Anjos voem? 


Fernando Portela criou Pastores Alemães Brancos durante anos.
Leia abaixo comentários do escritor e jornalista sobre a raça:

O PAB tem uma bela história.
No final da II Guerra, quando as forças aliadas invadiram a Alemanha, policiais militares ocuparam, também, as inúmeras criações de Pastores Alemães, muito usados, aliás, na própria guerra.
O PA possui três linhagens de cor: capa preta, o mais conhecido; preto; e cinza. Os alemães nunca gostaram muito dos pretos e menos ainda dos cinzas, mas os toleravam.
Em algumas ninhadas, no entanto, nasciam cães inteiramente brancos. Os alemães os mandavam para o céu no ato do nascimento, alegando que se tratavam de albinos.
Não eram. Albinos teriam, por definição, manchas róseas na epiderme, sobretudo nas almofadas dos pés, céu da boca e comissuras labiais. E, infalivelmente, albinos teriam olhos muito claros.
O PAB não tem nada disso: só o pelo é branco; o resto, igual aos seus irmãos de outras cores.
Maravilhados com a beleza dos brancos, americanos e canadenses os exportaram para seus países. Hoje, nos Estados Unidos, o branco é reconhecido pelas entidades cinófilas, possuem até associações próprias, ganham concursos e tudo o mais. Têm pelo curto e pernas em geral mais longas do que os canadenses.
Já no Canadá, criadores experimentaram, há quase 70 anos, a cruza dos brancos alemães com o Lobo do Ártico, outro animal lindíssimo, de pelo completamente branco, habitante das regiões geladas. É por isso que boa parte dos PAB de origem canadense têm pelo longo, pernas um pouco mais curtas (não muito), e, obedecendo a heranças genéticas, batem com a pata na água, antes de bebê-la, para "quebrar" o gelo, como seus trisavós lobos.
Então, essa é a origem do maravilhoso cão; eu sempre possuí, na minha criação, americanos e canadenses, mas sou mais chegado nos peludos. O Tyler (foto) é um misto dos dois.
Há um certo mistério, apesar de todas as teorias que já li, na constituição do PAB: sua inteligência, segundo as provas de Agility, é equivalente à do cão mais genial de todos os tempos, o Border Collie, célebre pastor de ovelhas do Reino Unido. Explicação mais plausível: o PA comum já é muito perceptivo, está a um patamar abaixo do Border Collie; e como o branco não possui a agressividade, mesmo a dirigida, dos seus congêneres capa preta, preto e cinza, "sobraria" um espaço em seu cérebro para elaborar melhor as associações. Já o trote com os milésimos de segundos de levitação, só eles fazem.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Embriaguez e Beethoven, temas de ficções

Por Renato Pompeu , no Jornal Diário do Comércio
Dois lançamentos de ficção, o livro de contos Memórias embriagadas, do pernambucano Fernando Portela, editado pela Noovha América, e o romance A décima sinfonia, do espanhol que se apresenta sob o pseudônimo Joseph Gelinek, publicado pela Primavera Editorial, proporcionam bons momentos de entretenimento, são informativas documentações sociais, respectivamente, sobre o Brasil de hoje e sobre o meio musical internacional e, no caso do romance, há um didatismo bastante elucidativo sobre a música em geral e a obra de Beethoven em particular.
O bem-sucedido jornalista Fernando Portela, que foi diretor do Jornal da Tarde e diretor de Comunicação da Fiat, completa com esses novos contos uma trilogia iniciada com Allegro, em 2003, e continuada com O homem dentro de um cão, de 2007.
Ele surpreende pela imaginosa fabulação - ao contrário da maioria dos ficcionistas oriundos do jornalismo, ele não se baseia em fatos reais que acompanhou, ou em episódios de sua vida pessoal ou de seus conhecidos. Ao contrário, o realismo de seus contos é o realismo dos sonhos, o realismo, literalmente, das visões afetadas pela embriaguez.
Seus personagens são normalmente desalentados, vencidos da vida, destituídos: o artista popular que centenas de vezes levou o grande teatro a circos e que, quando morreu, não foi considerado digno de ter seu necrológio publicado nos jornais, o avô do neto morto por atropelamento que sai atirando contra todos os carros que vê pela frente, a louca que levava pedradas na rua, a menininha que imagina situações eróticas com quem não deve.
O clima é de sonho, às vezes de pesadelo, e as tramas prendem o leitor, além do que o desenlace é sempre surpreendente. Tramas envolventes e desenlace surpreendente também são o forte do romance do musicólogo de elite e fã da cultura popular Gelinek, romance que gira sobre a redescoberta da integralidade da partitura original da décima sinfonia de Beethoven, da qual, na realidade histórica, só nos restaram fragmentos que não chegam a compor um trecho completo. O enredo envolve uma investigação policial sobre um assassínio e uma pesquisa sobre a localização do suposto manuscrito da sinfonia.
A ação se passa na Espanha dos anos 1980 e na atualidade, na Viena contemporânea e do século 19, na Córsega, na França, na Nova Zelândia - um signo da globalização. Os leitores são informados sobre aspectos profundos da criação musical e da vida dos grandes compositores, e veem episódios das tramas serem comparados a cenas de filmes famosos e até mesmo de anúncios de televisão, ou de programas de humor.
O autor tem um conhecimento enciclopédico sobre tudo isso e, principalmente, consegue transmitir essas noções de uma forma bem compreensível e bastante prazerosa.
O leitor, além de beneficiado com uma trama policial que envolve inspetores, peritos, médicos-legistas, juízes e até príncipes, também tem vislumbres sobre as vidas de luxo de arquimilionários, com suas obras de grande arte cuidadosamente colecionadas, e sobre o passado e o presente da famosa escola de equitação espanhola da Viena sempre com ares imperiais. Há ainda lições sobre criptografia em geral, criptografia musical, criptografia maçônica, grafopsicologia, em que, a par de ficar envolvido em densos mistérios que pouco a pouco se esclarecem (ou não), o leitor também se vê iniciado em diversas formas de anotar segredos de maneira que não sejam descobertos. Suspeitos se tornam investigadores, investigadores se tornam suspeitos, até o desenlace que junta, assustadoramente, todas as peças dos vários quebra-cabeças ardilosamente montados pelo autor.
Em suma, enquanto Portela surpreende pela riqueza de sua imaginação, de sua capacidade de fabular, de literalmente criar fábulas em que os arquétipos são seres humanos e não animais, Gelinek surpreende pela capacidade de produzir - mais do que criar, pois ele segue todas as regras da produção de um bestseller - um romance tão cheio de ensinamentos e de desafios ao raciocínio do leitor.
*Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo Como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.