quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Jornalismo literário promete decolar no formato digital

Uma tendência se anuncia no mercado editorial, com o acordo fechado essa semana entre a DLD (Distribuidora de Livros Digitais, representa L&PM, Objetiva, Record, Sextante, Rocco, Planeta, Novo Conceito e a canadense Harlequin) e a Amazon e o Google. “Estamos efetivamente à beira do ponto de inflexão do consumo do livro digital no Brasil. Agora ele vai começar a representar uma parcela significativa do mercado”, declarou Roberto Feith, diretor-geral da Objetiva e presidente do conselho da DLD, ao jornal Valor Econômico (SP/ 28.11.2012). E comentou: “(...) a expectativa é de mudanças também no perfil de leitor e, consequentemente, no padrão de consumo, com a ascensão de gêneros como ficção científica e mistério e uma maior oferta de textos como ensaios e grandes reportagens. (...) grandes reportagens sobre temas em destaque no noticiário (...). São textos que precisam de mais espaço do que o disponível em jornais e revistas e de uma publicação mais ágil do que as editoras conseguem. Problemas superados com o livro eletrônico (...). No formato digital, é possível levar esse tipo de obra para o público em um intervalo de algumas semanas ou um mês." 
__________________________________________
Uma oficina sob medida para os novos tempos
Fernando Portela há muitos anos escreve ficção e não ficção (reportagem) quase ao mesmo tempo. Jornalista, foi um dos fundadores do Jornal da Tarde e autor de grandes reportagens da época gloriosa do JT, várias migraram para os livros. Do jornalismo, extraiu inspiração para a ficção e criou inúmeros personagens e histórias carregadas de mistério, delírio, ambigüidade, tragicomédia e realismo. “Eu escrevo a minha vida, que sempre foi muito rica, movimentada, excitante, e não poderia ter havido um curso melhor de humanidades do que conviver com gente, de toda cor e cheiro, de línguas diferentes, e de ter-me misturado com tantos santos, crápulas e pulhas. Enfim, eu escrevo a experiência acumulada”, diz. 

Pois foi a partir desta experiência de mais de 40 anos de campo e imaginação que Fernando Portela criou a sua OFICINA de JORNALISMO LITERÁRIO e REPORTAGEM GERAL. São dois módulos, um de quatro meses, com aulas semanais de duas horas, que pode ser cursado em São Paulo (cidade de residência do escritor/jornalista) e um expresso, de quatro ou cinco dias, que Portela levará, a partir de 2013, a diversas cidades brasileiras. A ascensão do formato digital no Brasil deverá representar um importante canal de revelação de novos escritores/repórteres e, como já se disse em relação às oficinas literárias de ficção, se o talento não se transmite em sala de aula, como um vírus de gripe, o caminho mais curto para aprender a organizar as palavras, no entanto, está nas oficinas de escrita.
___________
Os mestres
Editor de uma verdadeira legião de repórteres, Portela comenta que sempre disse às suas equipes: “Leiam poesia, de qualquer um e em qualquer língua; e leiam autores como Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues para assimilar fluidez de texto”.  O escritor/jornalista inicia sua oficina com a apresentação do conceito de reportagem geral e jornalismo literário (com referências, por exemplo, a Truman Capote e Gay Talese, sem descartar São Matheus, o evangelista, “repórter de texto sofisticado”, e os mestres da antiga revista brasileira Realidade). Depois faz com que os alunos realmente pratiquem esse tipo de jornalismo. “Quando diferencio jornalismo literário de reportagem, estou dizendo que jornalismo literário tem mais a ver com o acabamento, o escrever; mas não adianta escrever bem se não souber colher o material jornalístico necessário”, revela, passando à próxima etapa: as técnicas de reportagem. 

Todos os alunos terão tarefas a executar na rua porque as oficinas não são teóricas, mas extremamente práticas. “Meu terreno é o dia a dia, o erro, a procura, a humildade. Você só escreve bem se passar por todas essas provas. O aluno escreverá rigorosamente o que colheu,  por mais que lhe pareça ‘pobre’. Toda realidade é rica. Eu mesmo escrevi páginas sobre o suposto nada, com muito sucesso, a ponto de virar livro, junto a outras matérias”, afirma, comentando que o aluno aprenderá na vivência de rua e na assimilação de estilos. “Não é possível confundir jornalismo literário com ficção. Grandes escritores brasileiros, por exemplo, nos servem como forma: um leitor de jornal dormiria se algum assunto fosse tratado com o ritmo de boa parte deles. Quer dizer, as frases são curtas, não há a mínima gordura, mas também não há a agilidade necessária à sedução do leitor de coisa rápida, como jornal ou revista.”

Mesmo no módulo da oficina de quatro dias, Portela esclarece que a coleta de material não é prejudicada pelo tempo expresso. “Os alunos viverão cerca de vinte e quatro horas no papel de ‘repórteres’ – um tempo absurdo, de tão longo, para repórteres de verdade, acostumados a colher dados e escrever em poucas horas. A partir das experiências individuais, daremos as noções de coleta de dados, suas dificuldades e limitações”, explica.  Ele analisará o material e as soluções de texto (com ampla discussão sobre técnicas) e levará todos os trabalhos para leitura e exame. No último dia, cada texto será analisado e discutido em classe. “Apesar do tempo curto, iniciarei um trabalho de preparação de repórteres iniciantes, algo que fiz durante boa parte da vida. É importante esclarecer que o candidato pode ter qualquer idade. Repórteres não têm idade”, afirma. Os trabalhos serão devolvidos aos alunos com as sugestões de correções – se necessárias. Fechando a Oficina Expressa, será sugerida a criação de um blog para expor os trabalhos.


______________________
De ficção e de realidade
Fernando Portela é autor de textos que são uma espécie de modelo de jornalismo literário, como a reportagem do translado dos ossos de D. Pedro I ao Brasil, em 1972. “Fiquei em um navio de luxo, o Funchal, durante 12 dias de luto e escrevi literalmente sobre o nada.  Ou melhor, joguei o ‘veneno’ que pude em textos aparentemente fúteis sobre uma viagem ridícula, entre duas ditaduras, que poderia ter sido feita em nove horas de avião”, comenta.
O interesse maior do escritor/jornalista sempre foi o uso das diferenças de linguagem, “das possibilidades de cambiar, de experimentar, de misturá-las, ou de usar atributos de umas para aperfeiçoar pontualmente outras, essas coisas”, diz. Sempre experimentando, procurando inovar, Portela fez reportagens que são contos, sem que, em momento algum, tenha mudado uma frase de um entrevistado para “melhorar” o texto. “O fim do cinema no interior de São Paulo, matéria que escrevi para o JT, é um conto”, comenta. No caso, em Vera Cruz (o repórter escolheu a cidade a dedo). É linguagem literária, construção típica de ficção, e todos os personagens reais. “Claro que meu jeito de ver o mundo dava o tom. Lembro-me que, ao descrever o prédio estropiado do velho cinema ‘morto’, eu usava a expressão ‘cimento-ectoplasma’. Os leitores gostavam muito desse jeito de fazer jornal. Escreviam cartas apoiando, ou o trabalho em si ou o atrevimento de fazê-lo”.

Da reportagem policial, Portela também extraiu muita ficção e em vários contos abordou a violência, até depurar a linguagem. “Os meus primeiros livros, segundo algumas opiniões, eram quase insuportáveis, de tão violentos, pingavam sangue. Ou seja, o narrador estava chocado. Com o tempo, acredito, essa visão foi-se depurando e talvez eu tenha começado a associar criminalidade com o cotidiano do Brasil, a entendê-la como ‘cultura’. O criminoso passou a ter, primeiro, cara, depois, sentimentos. Minhas histórias, hoje, mostram não exatamente uma visão tragicômica da violência, mas uma visão mais humana (que inclui a tragicomédia) de uma sociedade onde a violência se enraizou”. 

Para ler mais:
Jornal Valor Econômico (28.11.2012) Livro digital estimula novos gêneros e outro perfil de leitor
Jornal Zero Hora (30.11.2012) - Chegada de leitores e livrarias digitais esquenta briga de e-books


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OLINDA

A luz.
Ah, esta luz de Olinda, a minha Olinda. E pensar que há décadas eu abandonei esta luz e as cores da sua consequência para a aventura paulistana... Em todos esses anos, uma pergunta feita por tios, primos, e agora sobrinhos, me traz um daqueles desconfortos filosóficos de que a gente foge a vida inteira: "Mas por que diabos você saiu daqui?"
Respondam, meus botões: por que,  mesmo? Como é possível descartar, conscientemente, essa visão enternecida, transcendental, de mangueiras, coqueiros, telhados seculares e o mar-lá-longe, a partir da colina onde se erguem a igreja de Santa Gertrudes e a escola do mesmo nome (a "academia")?
Como foi possível abandonar essa paisagem muito mais adequada ao êxtase dos santos, à glória dos eleitos? Uma paisagem de tal encantamento que, em geral, um suspiro do visitante a descreve melhor do que estas palavras, do que mil palavras, ou fotos, ou ainda as gravações de ingênuas filmadoras eletrônicas (é verdade: há gente que tenta filmar isto). Seria mesmo muita pretensão da tecnologia querer captar essa luz encantada que pode levar a um delírio místico.
 Cuidado, sensitivos, cuidado com Olinda. Não é uma cidade nem um estado de espírito. É simplesmente um dos Portais Angélicos, um daqueles points do nosso devassado Planeta que os Mensageiros Alados (eles próprios energias luminosas,  sutis), escolheram como porto  por estarem mais próximos da sua divina natureza. (Há outras dessas estações no mundo, como Assis, na Itália; Toledo, na Espanha. São poucas.)


 Mas, meu senhor, minha senhora, meu jovem:  tenham cuidado com Olinda. Contenham seus sentimentos. Nada de choros, se bem que a gente entende que a História e aquele mar são comoventes. É claro que suas almas delicadas não vão escapar da sedução de sacadas e balcões dos sobrados do século XVI, marcos das desigualdades sociais que tanto macularam essa primeira capital da Capitania, desde sua fundação portuguesa, em 1535.
Radicalmente nobre, a cidade se especializou, desde sempre, em charme, exuberância e ostentação, como a mania de se usar puxadores de ouro e dobradiças de prata nas portas das casas da época. Cidade que, nos seus anos de glória, costumava chamar de "povo", com total naturalidade, o lugarejo à beira do porto que se transformaria na burguesa Recife.
Diziam os olindenses, com simpática tolerância: "Vamos dar uma volta no "povo"? Hoje, essa nobreza se manifesta de outras formas. A população de Olinda, por força da herança majestosa, trata o visitante com uma hospitalidade que somente dono de palácio pode se dar ao luxo. São 350 mil a nos receber com uma alegria, uma jovialidade que podem mesmo parecer sem motivo, sobretudo para quem vem do estresse. A simpatia surge dos lendários meninos que sabem de cor a História da cidade, com detalhes de cada rua e prédio; mas pessoa qualquer a quem você peça informação fará o possível para torná-lo feliz. Se for perto do Carnaval, como agora, esse impulso aumenta.
 O Carnaval é uma loucura em Olinda - na inteira acepção da palavra. Um milhão, setecentas mil, quinhentas, sei lá, um monte de gente sobe e desce as ladeiras, a pular e a gritar,  embalado pelo frevo tocado ao vivo (frevo, música delirante, obsessiva, espécie de desabafo das bandas marciais). E o olindense não admite carros de som. Ameaça depredá-los, até, quando insistem.
Há uma explosão de criatividade nas fantasias, quase sempre críticas e bem-humoradas, exibindo das piadas escrachadas às reflexivas. Pequenos blocos são criados a qualquer pretexto, como o "Bloco da Porta", que há anos desfila pelo Carnaval olindense e nasceu do esforço de um free-lancer desempregado que decidiu trabalhar no carnaval. Estava carregando uma porta para consertar quando notou que uma pequena multidão o seguia, dançando. Lógico, ele aderiu. Pode-se dizer mesmo que o Carnaval é o momento mais democrático da cidade. Dançam, juntos, o rico, o pobre, o classe média. Fazem rodas e dão-se as mãos. Ficam todos iguais: todos nobres.
 A nobreza é atávica. Porque todo mundo mora em um palácio. Não adianta a afirmação dos famosos pintores João Câmara e Delano, amigos de décadas, vizinhos da rua de São Francisco, ocupando, cada um, seu  casarão histórico. Eles dizem, quase em côro, que não foi a energia de Olinda que atraiu os artistas à cidade. (Como se sabe, Olinda possui a maior concentração brasileira de artista por metro quadrado.) Os artistas teriam vindo, na década de 60, por causa das melhores condições ecônomico-financeiras oferecidas. Muito espaço nos quintais, casas tão grandes como baratas. Aí foi juntando artista. Na década seguinte, artista morar em Olinda já tinha virado moda. Depois vieram os de outros estados. Mais uma década e estrangeiros também aportaram no Montparnasse tropical. Não adianta esse tipo de explicação. Deixe-se ao Recife a racionalidade. Aqueles dois vieram para cá atraídos pelo sortilégio maior que toca os escolhidos, os talentosos. E os resgata para os Campos do Senhor. Olinda é isto: magia e emoção - cândida, genuína. Hoje, Delano e João Câmara não teriam outro lugar para viver. "É, a gente já acostumou..."- diz Câmara, deitado numa rede, saboreando um suco de manga do seu quintal ao lado da mulher, Maria Adelaide. "Aqui é provinciano, calmo, eu saio na rua de bermuda e sandália japonesa", completa o outro artista, incomodado por considerar, mesmo teoricamente, a idéia de sair da cidade.
 Mas você vai entender melhor tudo isso quando assimilar o vermelho-vivo da casa que - dizem - foi de Maurício de Nassau, o holandês, o "recifense" que quase destruiu Olinda, na invasão de 1630.
Não deixe de observar bem o caimento oriental de alguns telhados, o piso de época, o Mosteiro de São Bento, os museus de Arte Sacra e de Arte Contemporânea, a Igreja do Carmo e a imponente Catedral da Sé.


São 22 igrejas e 11 capelas. Se quiser uma lembrança, tudo bem, entre no Mercado da Ribeira e compre o artesanato muito simples - simples demais, você pode achar, antigamente era mais caprichado - produzido por mais dos 100 artistas populares que invadem a cidade; além deles há cerca de 5O pintores,  dos quais boa parte é conhecida nacional e internacionalmente. Se quiser comprar um dos seus quadros, basta perguntar onde moram, bater palmas na porta e entrar.
Quando você tiver fome, a oferta é imensa, sobretudo a de pequenos restaurantes de comida caseira-típica. Se fosse você, experimentaria o Oficina do Sabor, número 335 da rua do Amparo. Saiu até no New York Times. Peça a "Charque à moda do chefe", que vale a pena.
No mais, pensando bem, foi temeridade minha escrever tanto sobre esta cidade. Sinto-me diante daquelas pessoas que, quando descobrem que nasci em Olinda, fazem a analogia automática: "Olinda: como Ouro Preto, não é?"
"Mais ou menos", respondo, consciente da impossibilidade de descrever minha cidade. "Ouro Preto... com mar."
Digo mar como se a palavra tivesse muitas sílabas. De certa maneira tem: ou seria um simples mar a luz coagulada à minha frente, que se faz verde, transmudando-se em azul profundo à altura dos arrecifes (olhe, surgiu uma vela branca, ao sul), onde chegam a ser comuns as ocorrências em violeta?
É mar, apenas, ou puro devaneio dos sentidos, aquilo que surge por trás das árvores e das duas torres da Igreja do Carmo? Se fosse somente mar, e nada mais do que mar, daria vontade de chorar, ao contemplá-lo?

Texto publicado na extinta revista Exame Vip.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Lúcida embriaguez da palavra

Entrevista de Fernando Portela para o Jornal do Commercio, de Recife.
Sobre o livro Memórias Embriagadas.
(09.03.2009)
  

Por Marcelo Pereira




Como era sua rotina de trabalho na escrita dos contos? Já se deu por satisfeito em seu projeto literário ou continua no mesmo ritmo? Que unidade você buscou na triologia?
Jamais tinha feito isso antes: obrigar-me a escrever de qualquer jeito. Mas precisava acabar com o mito, dentro de mim mesmo, do “melhor momento” ou “inspiração”. Escrever qualquer coisa é só trabalho. Não busquei uma unidade porque sou dispersivo, múltiplo e levemente esquizofrênico. Se há unidade, é na linguagem. Como diz Humberto Werneck que apresentou um dos meus livros, eu escrevo “fácil”, mas só na forma.
Vou falar da vida real e da vida sonhada.
Hoje, passo o dia editando livros de três coleções. Eventualmente, à noite, escrevo alguma coisa, na verdade reescrevo, pois estou preparando um livro "novo", a partir da compilação de dois livros antigos, de contos. Passo cerca de dez horas diante do computador.
A vida sonhada é contratar um editor profissional, passar a execução pra ele e escrever ficção durante todo esse tempo, ou um pouco menos, para conseguir ler alguma coisa.
Mas não estou me queixando, não me queixo de nada.
O projeto da trilogia acabou. Foram 150 histórias curtas.  


Algumas dessas histórias foram escritas embriagadas? Ou são frutos de uma lucidez alucinante? 
Dentro das redações de jornal, onde trabalhei boa parte da vida, sempre me fascinaram os caras que conseguiam escrever bêbados ou “tocados”. Porque eu não consigo. Nem com um cálice de vinho. A lucidez me é fundamental para entrar no meu porre particular. Descobri, há algum tempo, que escrever, pra mim, é o mesmo que meditar. Entro em alfa.  

Você faz anotações das histórias antes de começar a escrevê-las?
Nunca planejei nada. Sigo o pensamento sufi: “Planejar é repetir o que você fez no passado, é uma idéia morta. A vida é como um pássaro no céu: voa, não deixa vestígios, e o céu continua tão vazio como antes. Seja como um pássaro, mova-se de acordo com o que o momento lhe solicitar, com o que sua inteligência disser naquele instante”.
O que acontece é que, às vezes, a idéia genérica de uma história vem junto com seu desenvolvimento, um certo roteiro. Mas não me lembro de ter seguido, jamais, a proposta inicialmente pensada. Mudo tudo.

De onde vêm tantos temas?
Da dispersão pessoal, da vontade de entrar em todo lugar e em todas as cabeças, de uma curiosidade mórbida, da função de repórter que sempre exerci. 

Como você define seu estilo de leitura? É um leitor compulsivo? O que mais gosta de ler? Reportagens jornalísticas, ficção, ensaios?
Esta é sempre a pergunta mais difícil. Porque leio tudo: genial, ruim, mais ou menos. Leio os reconhecidos, esquecidos e odiados. Um dia desses, um repórter de rádio me perguntou, ao vivo, qual o livro mais importante da minha vida. Eu respondi, com honestidade, “A Doutrina Secreta” (de Helena  Blavatsky) e foi um grande constrangimento porque o rapaz não o conhecia. Não sei se ele tinha obrigação ou não disso, mas nunca deixarei de dizer o que penso – o que, hoje, é o cúmulo do politicamente incorreto. O antimarketing. Mas o que me provoca orgasmos literários é poesia. De qualquer tempo e escola.

Como conciliar a literatura com os outros afazeres profissionais?
Usar os afazeres como matéria prima para histórias. Sempre fiz isso.
A violência está sempre pronta para explodir em seus contos. Isto é uma estratégia do narrador ou reflete a violência própria do país?
É um reflexo deste pobre país, violento sob todas as formas, das quais a social é a mais complexa. Somos uma imensa máfia. Temos de resolver isso com urgência.

Você não consegue segurar os impulsos dos seus personagens, que no destempero abrem o verbo e chamam palavrão. Isto é uma forma de catarse pessoal?
Acredito que seja, ainda, um reflexo da violência do meio ambiente. Tenho contos inteiros sem um único palavrão, quando retrato o “outro lado” do Brasil, o das pessoas comuns, ingênuas, incorruptíveis. O país em que gostaria de viver.  

Já pensou em se aventurar a algum projeto de mais longo fôlego, como um romance? 
Já escrevi novelas juvenis. Romance, acho que vou começar a escrever um. Mas tenho medo de sucumbir à minha própria dispersão.

Qual o seu projeto literário atual?
Estou juntando histórias dos meus primeiros livros, “Leonora Premiada” e “Querido Senhor Assassino”, ambos da década de 70, para fazer um volume só. Já tenho até o título (de uma história passada no Recife profundo): “O Rock dos Miseráveis”. 

Suas histórias não possuem nenhuma localização geográfica específica, precisa. Há apenas indicações: campo, cidade, subúrbio etc. Por quê?
Porque eu sou assim, impreciso e inespecífico. Mas tenho histórias passadas no sul do Brasil, por exemplo, que dá todas as dicas para o leitor. Numa delas (“Aleluia”, do livro “Allegro”), a personagem chama-se Don Antônio – assim mesmo, com “n” - e cria ovelhas de lã.

O fenômeno sobrenatural (místico e, às vezes, de malassombro e etês) está presente em alguns contos, às vezes se constituindo num realismo fantástico ou maravilhoso. Como você encara o fenômeno sobrenatural e a espiritualidade?
Acredito piamente que a brincadeira não acaba aqui, nesta vida. Assim, há um extenso (e maravilhoso) campo intermediário entre as realidades física e incorpórea, ou espiritual. Escrevo muito sobre isso.

Você coloca nas palavras de um personagem uma crítica às revistas semanais e ao governo. A literatura é uma forma de crítica social e desabafo?
Sou um “filho” da ditadura militar que deixou o Recife em 1965 pela dificuldade de conviver com as travas culturais. Continuo com as mesmas aspirações de estudante: justiça social, democracia e ética. Profundamente, tudo o que aconteceu de progresso social dos anos 60 pra cá é paliativo. Óbulo, ajuda, socorro, mãozinha, pra não dizer esmola. A literatura ajuda na medida em que mostra espontaneamente uma realidade tão dolorosa que nós todos tendemos a racionalizar. Não acredite jamais em quem lhe diga: “Avançamos muito”. Porque continuamos na mais absoluta e pastosa merda social. 

Não há muita desesperança em seus contos? 
Há, sem dúvida. Mas quero ser desmentido, desautorizado, negado. Espero que isso aconteça, um dia.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O talento de Fernando Portela

Por Luthero Maynard 
Livro de contos sintetiza a arte da narrativa curta, cujas palavras são empregadas com a precisão de jornalista experimentado, a sensibilidade, o estilo e o humor de autor clássico e a imaginação de artista das palavras.
Fernando Portela é mestre reconhecido em dois ofícios dos mais difíceis de se ganhar notoriedade consistente por mais de 24 horas: jornalismo e literatura. No jornalismo, assinou reportagens hoje referenciais para os estudantes das (mal) chamadas faculdades de comunicação social. É o caso das reportagens que revelaram para o público a guerrilha do Araguaia (1979), sistematicamente ocultada da opinião pública pela ditadura militar então no poder.
Matérias que deram origem ao livro “Guerra de Guerrilhas no Brasil - A Saga do Araguaia”, modelo do que mais bem produziu o jornalismo investigativo (e, raro, raríssimo, com sabor literário) no país. Na literatura, Fernando Portela é refinado autor de contos para jovens e adultos — inclusive um livro infantil —, livros paradidáticos e romances.
Com “Allegro - Tragicomédias, Delírios, Realismo, Ambigüidades” (Editora Terceiro Nome, prefácio de Humberto Werneck, outro mestre, 416 págs., R$ 38), Fernando Portela supera-se na arte da narrativa curta, cujas palavras são empregadas com a precisão de jornalista experimentado, a sensibilidade, o estilo e o humor de autor clássico e a imaginação delirante de artista das palavras.
“Alegro” reúne 91 contos — pode-se assim dizer, pois não se prendem à estrutura convencional do gênero (se é que existe) — que vagueiam, sem pudor, por todos os caminhos oferecidos pela escrita literária, tendo em comum apenas a excelência do estilo. Por exemplo, “Violentadas”, o conto de abertura, é o anticlímax (de humor demencial) do sentimento de medo produzido pela violência urbana. Três amigas, Ermínia, Cleíse e Maria Rios são rendidas no apartamento por um (falso?) encanador, o Gumercindo. Ele não quer dinheiro ou violentá-las: apenas vê-las peladas. Depois de uma improvisada (e deliciosa, também para o leitor) sessão de strip-tease, Gumercindo — já tratado carinhosamente de Gu pelas garotas — vai embora. E volta na noite seguinte e nas seguintes. A reflexão final de Ermínia é antológica: “O Gu, também, coitado, é um carente; no fundo, uma boa pessoa. Não vamos chamá-lo de amigo, mas... pra tarado, é dos mais discretos.” Resistir, quem há de? Corra comprar e se deleitar.

(Resenha publicada em 08.07.2003, no jornal O Diário de S. Paulo)