segunda-feira, 22 de outubro de 2012

BRENNAND

Texto escrito, em 2002, por Fernando Portela

Vênus e eu nos olhamos, apaixonadamente, durante mais de vinte anos. A pele queimada do seu corpo nu, os cabelos femininamente longos, até o quadril, a mão esquerda cobrindo o sexo, sem pudor algum, apenas em função do gesto harmonioso - Vênus tem sido para mim, mais do que uma paixão, uma lembrança perene da mística de Francisco Brennand.
Vênus me foi presenteada no começo dos anos 70, na única vez em que estive com o artista, e já nem lembro bem qual o assunto que me levou até o Templo, na época ainda em construção. Uma reportagem qualquer, coisas do dia-a-dia de um jornal. Nem sei se queria falar com o empresário, produtor de cerâmicas para pisos e forrações, ou com o pintor genial (nesse tempo ele era mais conhecido como pintor).
“Gosta de gravuras?”, perguntou Brennand (como se a mídia fosse mais importante).
“Não se incomode.”
Um homem muito alto, quase magro, com uma voz mansa e gentil. Não usava as longas barbas de hoje. Encaminhou-se a uma das mesas compridas, de madeira rústica, apoiada em cavaletes, no meio do imenso galpão de olaria (sempre, na minha memória, aquele espaço sobreviveu como um recinto da Idade Média). Abriu com cuidado um pacote empoeirado e de lá tirou uma das poucas cópias da minha amada.
“Para você se lembrar daqui, deste lugar”, ele disse.
Hoje eu entendo que não estava sendo apenas gentil com o jornalista. Sua missão nesta vida é fazer com que as pessoas não esqueçam daquele lugar.
Pois, já nos anos 70, Brennand não teria por que se preocupar com isso.

Na verdade, o pintor, ceramista, escultor já era, havia muito tempo, um ídolo ou, muito mais do que isso, um Mahatma moderno, guru e mestre - referência luminosa - de toda uma juventude às vésperas do golpe militar de 64. 
Ele adquiriu essa condição mítica e quase mística ainda durante o primeiro governo Arraes, quando, meses antes do golpe, assumiu a chefia da Casa Civil do Governo. Era, além de artista, o empresário moderno, de acintosa juventude; intelectual, nacionalista, socialista, tropical e talentoso, e tão visceralmente comprometido, a exemplo dos estudantes que éramos,  com o sonho de um país igualitário e moreno.
Sua pintura de frutas e folhas, da cor mesmo dos sonhos pós-juvenis, já havia invadido os espaços das artes, até no sudeste dos supercríticos, e não poderia haver, no nosso Estado revolucionário, melhor representante da nova mentalidade que destruiria os usineiros despóticos e demais representantes das Forças do Mal. 
Miguel Arraes, com toda aquela esperteza adquirida na origem pessedista, plantara Brennand à frente do seu governo popular como uma cunha, charmosa e delicada porém, para fender eventuais recaídas da elite empresarial mais jovem e moderna, que se contrapunha, com alguma timidez, ainda, ao eterno poder dos usineiros arrogantes.
Em nenhum momento, falava-se da origem porventura deífica do artista-empresário, de tão nobre; da sua realidade de moço nascido em palácio, com raízes fincadas na glória da resistência ao invasor holandês; e isso sempre pelas raízes da mãe - sua avó chamava-se (vá contando) Francisca de Paula Cavalcanti de Albuquerque Lacerda de Almeida Brennand -, e entre seus ascendentes figurava ninguém menos do que o Barão de Ipojuca e o Conde da Boa Vista.
No Palácio das Princesas, sede do governo pernambucano, nos idos de 64, não havia a menor chance de que um assunto dessa natureza virasse conversa. Quem reinava àquela época era mesmo o povo, não fosse o Recife uma cidade moldada em massas populares, em contraposição à vizinha Olinda, às vezes vista como simples memória da nobreza ancestral.
Jamais se ouviria falar, naquele tempo, que o irresistível Chefe da Casa Civil do governo Arraes, um Apolo sedutor em si mesmo, ídolo de boa parte das mulheres em idade de adoração, ocupava, com seus ascendentes e descendentes, terras sagradas que haviam pertencido a André Vidal de Negreiros, herói máximo da epopéia pernambucana contra o invasor holandês.
Na verdade, o povo de Arraes parecia identificar-se mais com os próprios holandeses, invadindo o espaço da descendência portuguesa conservadora, convertida em donos de engenhos e usinas.
Brennand poderia - por que não? - estar com o povo, ou não seria o seu “Brennand” a identidade relativamente modesta da família inglesa que imigrara para o Brasil em 1820? Aliás, somente alguém ligado ao povo poderia ter a idéia de transformar a antiga Casa de Detenção, um depósito constrangedor de presos, na maravilhosa Casa de Cultura do Recife, hoje parada obrigatória de quem visita a cidade.
Brennand ficou muito pouco tempo, alguns meses, naquele cargo honorífico, pois o sonho socialista se desfez e - já por força da mística, quem sabe - quase nada aconteceu com ele, quando os milicos tomaram o poder. Os jovens estudantes se dispersaram, no entanto, ou fugiram, ou morreram em guerrilhas ou se humilharam aos vitoriosos.  O Brasil alegre e mulato, de cores e frutos como um mural do Mahatma, se desfizera da noite para o dia. Ficaram algumas daquelas belas paredes como referência, iluminando a cidade do Recife: o mural do aeroporto dos Guararapes e o do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Serviços de gênio.
Os deuses, como se vê, não queriam um Brennand político. A volta compulsória à velha olaria de muitos galpões, ou a fábrica de azulejos que a família mantinha desde 1954, fez com que ele, assumindo a parte estropiada do terreno, fundasse, em 1971, a Oficina Cerâmica Francisco Brennand, também conhecida como O Templo. O Estado de Pernambuco, e o Recife em particular, ganhavam mais uma glória para expor diante de todos os futuros.
  
Muitos anos depois, no final dos anos 90, voltei ao Templo em várias ocasiões. Dos anos 80 em diante, o artista iria se revelando como ceramista, escultor. Em algumas dessas visitas levei comigo executivos estrangeiros - sentia prazer em observar-lhes o espanto-deslumbramento-êxtase-arrebatamento diante dos assombros que se lhes apresentavam, adquirindo vida pulsante e qualificando seus delírios, pelo resto de suas vidas. Acabei escrevendo, como proposta de um roteiro do Recife, o seguinte trecho:

“Mas, se sua curiosidade (caro turista) é sócio-antropológica, está bem, vá em frente, ou melhor, siga para oeste em busca de bairros populares - pela avenida Caxangá, por exemplo. Em meio ao dia-a-dia sem brilho das pessoas, naqueles rincões tão brasileiros, você acabará chegando a um sonho tropical. Fica no popularíssimo e arborizado - como toda a cidade, aliás - bairro da Várzea. Chama-se, oficialmente,  Oficina Cerâmica Francisco Brennand S.A. Oficialmente, porque a empresa é apenas pretexto para apresentar ao mundo (e como o mundo a visita!) o Templo de uma civilização deliciosamente ímpia, e ao mesmo tempo mística, e também erótica, hedonista - magia pura. É a mais obrigatória das visitas do Recife, longe da praia. Não perca. Não perca mesmo. Sobretudo se você dá valor aos que transformam seus sonhos em matéria palpável, em arte. E consubstanciam, aqui na Terra, os desejos fluidos do deus Pã. Mestre Francisco Brennand, o pintor e ceramista, é o criador desse universo absolutamente singular. Ele, o verdadeiro Mago do Id, mantém 2.600 esculturas no espaço que tornou encantado - Galápagos, Atlântida, ruína asteca do ano 3.000.
Há quem veja com insistência, no saudável delírio daquelas peças, uma recorrente inspiração fálica... Haveria peixes-falos, abutres-falos, sapos-falos, soldados-falos e até um falo-falo convivendo em paz no átrio monumental da cidadela, onde luxuriantes cisnes negros, esses sim, biologicamente vivos, chegam a chocar de tão previsíveis.
O bom humor, aliás, permeia toda a obra genial de Brennand, espalhada pelos espaços enfeitiçados da Oficina. Ouvem-se elogios e expressões atônitas em várias línguas. E os estrangeiros têm dificuldade de aceitar que nenhuma daquelas peças esteja à venda. Brennand, raro exemplo de harmonia entre os talentos artístico e empresarial, faz com que suas quimeras sejam sustentadas pelas cerâmicas decoradas que comercializa em todo o País. Mais do que uma atração da cidade, a Oficina pode representar o acordo final entre os vários Recifes, no que têm de invenção e praticidade, trabalho e gozo, matéria e transcendência - a dialética entre a consciência da História e o impulso brutal da Esperança.”

Releio agora e percebo o quanto fui superficial e equivocado. É impossível descrever O Templo e a obra de Brennand. Dezenas de críticos, poetas, intelectuais, jornalistas - no mundo todo - já tentaram. O próprio Brennand experimentou uma ou outra auto-definição (“esta é a minha carnificina”; “eu sou o Sade que deu certo”), mas palavras, quando dirigidas àquelas exaltações do espírito, de nada valem.
“Erótico”, eu escrevi. Imagina: Brennand (hoje parece claro, cristalino) é o antierótico. Os falos, vulvas, testículos e úteros nascem da Dor do Mundo. Das chagas dos mendigos à porta da Capela Dourada, no centro do Recife; das prostitutas imundas, usando minissaia muito antes de Mary Quant, na antiga rua da Guia. Das multidões deserdadas e dos sertanejos comendo rato assado para sobreviver à seca.
De qualquer maneira, Brennand é para ser visto ao vivo - descrições, já disse, são insuficientes e falsas.
E o certo é que, a partir do momento em que você transpuser os portais do Templo, operar-se-á uma revolução no seu jeito de encarar a Arte - e a vida enquanto contemplação do mundo.   Arquétipos, sombras, ancestralidades, anseios fugidios, depressões, tudo o que for inconfessável emergirá aos borbotões da sua pobre alma - e você não mais será o mesmo espectador. Dependendo de como encara a idéia do “ovo primordial”, da sua origem neste planeta, essa perturbação poderá ser bastante escura - mas também poderá ser leve, até; só que haja terapia para equacioná-la! Nem tente.
  
Não tenho dúvida; você também não tenha dúvida: Francisco Brennand, 75 anos, é hoje o mais importante e criativo artista visual deste país. Um demiurgo? Talvez, na medida em que os Anjos se aprimoram na faina humana até atingirem a excelência do insight. Brennand é só insight, só intuição. Usa registros eruditos, sendo às vezes didático, provavelmente para não enlouquecer. Ele precisa nominar suas obras de “Lilith”, “Hidra”,  “Hércules”, “Hália” - além da amantíssima Vênus, a minha e todas as suas irmãs - , como única possibilidade de se ater à Terra e não transportar-se de vez aos espaços inefáveis.
Atrás dele, um coro de estudiosos continuará discutindo se sua poesia (por que não chamar de poesia o barro trabalhado a ferro e fogo?) é regional ou universal, se ele é um artista dos trópicos brasileiros ou das galáxias.
Hoje, não tenho a menor dúvida de que Brennand sobreveio de uma outra esfera. Como todos nós, talvez. A diferença é que ele nos mostra o que acontece por lá.   

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ANJOS VOAM


Lá estão os meus Pastores Alemães Brancos, brincando, sobre a colina.
Muitas vezes tenho refletido sobre sua transcendência, olhando-os assim, de longe. E acabei me convencendo de que ali não estão simples animais, ainda que cães, esses bichos sagrados, superiores, guardiães fiéis da nossa frágil humanidade, desde as cavernas. Os Pastores Alemães Brancos vão muito além desse conceito. 
Ali se veem símbolos eternos. O da amizade incondicional, por exemplo. Porque um Pastor Alemão Branco é um amigo que, além de morrer por nós, defendendo-nos, eleva essa amizade à condição da cumplicidade: não só entende as nossas angústias, como nos aponta as saídas. Basta conversar com eles. Quem possui um, entende perfeitamente o que digo. Experimente você também. Conte-lhe seus problemas. Todos. As respostas surgem, inequívocas, por meio de olhos doces que leem a alma; seu corpo esguio, charmoso, vai-se aconchegando às suas pernas e, em pouco tempo, você estará envolvido em um campo magnético propício aos insights, clarividências, iluminações. As respostas às suas angústias.
(A cor branca, é claro, tem tudo a ver com isso. O branco é a soma das sete cores básicas, e a soma simboliza o uno enquanto divindade. Se você imaginar, simbolicamente, que as cores são correntes vivas, energias diversificadas, conclui que a soma de todas elas só pode levar à luz divina da unidade – pureza celestial na sua forma mais complexa. Místico demais? Nem tanto: quando se fala de Pastores Alemães Brancos está-se tratando de um tema espiritual. É o que os próprios cães sugerem.)
Outra qualidade que insisto em destacar no Pastor Alemão Branco é o seu caráter incorruptível. Há, rodando na internet, um texto de autor desconhecido que fala de características especiais dos cães em geral, insinuando que deveríamos copiá-las. Todos os cães têm, realmente, aquelas qualidades, mas o Pastor Alemão Branco eleva-as a formas espiritualizadas. Por exemplo: ele jamais esconde na aparência o que realmente é; pratica a obediência, se isso for necessário, mas deixa claro quando percebe a invasão do seu território; e evita agredir, morder, se apenas um rosnado resolver o assunto.
E, sobretudo (ainda citando aquele texto), o Pastor Alemão Branco costuma sublimar o momento em que encontra seu dono num dia ruim: aí ele fica em silêncio, deita-se próximo e, gentilmente, tenta agradá-lo.
Há muitas outras referências transcendentais relacionadas a esse animal inigualável, que, aliás, eu nunca vi exatamente como um cão, mas como um extraterrestre. Não sei se a incidência da luz é maior no seu pelo ou na sua alma; talvez nos dois, pois segundo o Livro do Apocalipse, o branco é a cor das vestes daqueles que são realmente puros.
É por isso que não posso deixar de ver, naquela colina, os meus Pastores Alemães Brancos como seres transfigurados. Estados celestes. Sinônimos de leveza e de expansão. De equilíbrio. A cor branca, vocês sabem, amplia os espaços, espraiando-se ao infinito. Não sofre impedimento nem fronteira. O branco não está na terra nem no céu: o branco é a integração. 
Quando você tiver um Pastor Alemão Branco, vai entender melhor tudo isso que lhe digo. E nem dará muita importância a um fenômeno próprio dessa raça: quando ele trota, permanece milésimos de segundo suspenso no ar – como se ensaiasse um voo. Aliás, se ele voar, você também não dará a mínima: quem vai achar estranho que Anjos voem? 


Fernando Portela criou Pastores Alemães Brancos durante anos.
Leia abaixo comentários do escritor e jornalista sobre a raça:

O PAB tem uma bela história.
No final da II Guerra, quando as forças aliadas invadiram a Alemanha, policiais militares ocuparam, também, as inúmeras criações de Pastores Alemães, muito usados, aliás, na própria guerra.
O PA possui três linhagens de cor: capa preta, o mais conhecido; preto; e cinza. Os alemães nunca gostaram muito dos pretos e menos ainda dos cinzas, mas os toleravam.
Em algumas ninhadas, no entanto, nasciam cães inteiramente brancos. Os alemães os mandavam para o céu no ato do nascimento, alegando que se tratavam de albinos.
Não eram. Albinos teriam, por definição, manchas róseas na epiderme, sobretudo nas almofadas dos pés, céu da boca e comissuras labiais. E, infalivelmente, albinos teriam olhos muito claros.
O PAB não tem nada disso: só o pelo é branco; o resto, igual aos seus irmãos de outras cores.
Maravilhados com a beleza dos brancos, americanos e canadenses os exportaram para seus países. Hoje, nos Estados Unidos, o branco é reconhecido pelas entidades cinófilas, possuem até associações próprias, ganham concursos e tudo o mais. Têm pelo curto e pernas em geral mais longas do que os canadenses.
Já no Canadá, criadores experimentaram, há quase 70 anos, a cruza dos brancos alemães com o Lobo do Ártico, outro animal lindíssimo, de pelo completamente branco, habitante das regiões geladas. É por isso que boa parte dos PAB de origem canadense têm pelo longo, pernas um pouco mais curtas (não muito), e, obedecendo a heranças genéticas, batem com a pata na água, antes de bebê-la, para "quebrar" o gelo, como seus trisavós lobos.
Então, essa é a origem do maravilhoso cão; eu sempre possuí, na minha criação, americanos e canadenses, mas sou mais chegado nos peludos. O Tyler (foto) é um misto dos dois.
Há um certo mistério, apesar de todas as teorias que já li, na constituição do PAB: sua inteligência, segundo as provas de Agility, é equivalente à do cão mais genial de todos os tempos, o Border Collie, célebre pastor de ovelhas do Reino Unido. Explicação mais plausível: o PA comum já é muito perceptivo, está a um patamar abaixo do Border Collie; e como o branco não possui a agressividade, mesmo a dirigida, dos seus congêneres capa preta, preto e cinza, "sobraria" um espaço em seu cérebro para elaborar melhor as associações. Já o trote com os milésimos de segundos de levitação, só eles fazem.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Embriaguez e Beethoven, temas de ficções

Por Renato Pompeu , no Jornal Diário do Comércio
Dois lançamentos de ficção, o livro de contos Memórias embriagadas, do pernambucano Fernando Portela, editado pela Noovha América, e o romance A décima sinfonia, do espanhol que se apresenta sob o pseudônimo Joseph Gelinek, publicado pela Primavera Editorial, proporcionam bons momentos de entretenimento, são informativas documentações sociais, respectivamente, sobre o Brasil de hoje e sobre o meio musical internacional e, no caso do romance, há um didatismo bastante elucidativo sobre a música em geral e a obra de Beethoven em particular.
O bem-sucedido jornalista Fernando Portela, que foi diretor do Jornal da Tarde e diretor de Comunicação da Fiat, completa com esses novos contos uma trilogia iniciada com Allegro, em 2003, e continuada com O homem dentro de um cão, de 2007.
Ele surpreende pela imaginosa fabulação - ao contrário da maioria dos ficcionistas oriundos do jornalismo, ele não se baseia em fatos reais que acompanhou, ou em episódios de sua vida pessoal ou de seus conhecidos. Ao contrário, o realismo de seus contos é o realismo dos sonhos, o realismo, literalmente, das visões afetadas pela embriaguez.
Seus personagens são normalmente desalentados, vencidos da vida, destituídos: o artista popular que centenas de vezes levou o grande teatro a circos e que, quando morreu, não foi considerado digno de ter seu necrológio publicado nos jornais, o avô do neto morto por atropelamento que sai atirando contra todos os carros que vê pela frente, a louca que levava pedradas na rua, a menininha que imagina situações eróticas com quem não deve.
O clima é de sonho, às vezes de pesadelo, e as tramas prendem o leitor, além do que o desenlace é sempre surpreendente. Tramas envolventes e desenlace surpreendente também são o forte do romance do musicólogo de elite e fã da cultura popular Gelinek, romance que gira sobre a redescoberta da integralidade da partitura original da décima sinfonia de Beethoven, da qual, na realidade histórica, só nos restaram fragmentos que não chegam a compor um trecho completo. O enredo envolve uma investigação policial sobre um assassínio e uma pesquisa sobre a localização do suposto manuscrito da sinfonia.
A ação se passa na Espanha dos anos 1980 e na atualidade, na Viena contemporânea e do século 19, na Córsega, na França, na Nova Zelândia - um signo da globalização. Os leitores são informados sobre aspectos profundos da criação musical e da vida dos grandes compositores, e veem episódios das tramas serem comparados a cenas de filmes famosos e até mesmo de anúncios de televisão, ou de programas de humor.
O autor tem um conhecimento enciclopédico sobre tudo isso e, principalmente, consegue transmitir essas noções de uma forma bem compreensível e bastante prazerosa.
O leitor, além de beneficiado com uma trama policial que envolve inspetores, peritos, médicos-legistas, juízes e até príncipes, também tem vislumbres sobre as vidas de luxo de arquimilionários, com suas obras de grande arte cuidadosamente colecionadas, e sobre o passado e o presente da famosa escola de equitação espanhola da Viena sempre com ares imperiais. Há ainda lições sobre criptografia em geral, criptografia musical, criptografia maçônica, grafopsicologia, em que, a par de ficar envolvido em densos mistérios que pouco a pouco se esclarecem (ou não), o leitor também se vê iniciado em diversas formas de anotar segredos de maneira que não sejam descobertos. Suspeitos se tornam investigadores, investigadores se tornam suspeitos, até o desenlace que junta, assustadoramente, todas as peças dos vários quebra-cabeças ardilosamente montados pelo autor.
Em suma, enquanto Portela surpreende pela riqueza de sua imaginação, de sua capacidade de fabular, de literalmente criar fábulas em que os arquétipos são seres humanos e não animais, Gelinek surpreende pela capacidade de produzir - mais do que criar, pois ele segue todas as regras da produção de um bestseller - um romance tão cheio de ensinamentos e de desafios ao raciocínio do leitor.
*Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo Como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.