ENTREVISTA


Entrevista de Fernando Portela para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre jornalismo e literatura 

Em um outro projeto, Herberth Silveira e Tadeu Meniconi, membros da equipe que coordena este blog, fizeram uma entrevista com o jornalista e escritor pernambucano Fernando Portela, onde é discutida essa relação entre o jornalismo e a literatura, entre outras coisas. Confira abaixo o resultado dessa interessante entrevista com um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro nos últimos tempos. 

NÃO HÁ ESPAÇO NEM MESMO PARA A AUTOCENSURA - ENTREVISTA COM FERNANDO PORTELA


Herberth Silveira e Tadeu Meniconi
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Fernando Portela nasceu em Olinda, Pernambuco, em 1943. Começou a escrever aos treze anos e não parou mais. Sempre escreveu ficção, aliando a literatura às funções de redator de publicidade, repórter jornalístico, assessor de comunicação de empresa multinacional e diretor de projetos (marketing).
A partir de 1966, o nome de Fernando Portela esteve intimamente ligado ao Jornal da Tarde, de São Paulo, do qual foi um dos fundadores e exerceu quase todos os cargos na redação, sobressaindo-se nas matérias especiais. Sua reportagem de maior repercussão - A guerrilha do Araguaia - converteu-se no livro "Guerra de Guerrilhas no Brasil - A Saga do Araguaia", um clássico do jornalismo investigativo.
Hoje, continua ligado ao Jornal da Tarde, como o principal responsável pelos projetos especiais.
Autor de mais de 30 obras, escreveu, também, livros para adultos, adolescentes e crianças.
Essa entrevista foi realizada por e-mail logo após o lançamento de seu último livro "Allegro" pela editora Terceiro Nome.

Herberth e Tadeu: Como você enxerga o espaço dedicado a literatura pelos jornais hoje em dia?

Fernando Portela: O espaço é o possível. Em alguns órgãos de comunicação, eu diria que é até generoso.

H. e T.: No Jornal da Tarde você procura dar uma ênfase maior ao assunto?

Fernando: Vou cair fora da pergunta porque eu não mexo com a redação do JT. Minha posição é de criação de projetos, institucionais ou comerciais, e ainda de confecção de livros institucionais, como "A Guerra", de Julio Mesquita, sobre a Primeira Guerra Mundial. Julio Mesquita foi um dos primeiros diretores da empresa. Esse livro, aliás, é fundamental para a formação de brasileiros jovens como vocês. É o único documento sobre o assunto produzido por um brasileiro. É denso, mas a gente não deve acreditar na globalização, quando ela diz que se é profundo é chato.
Mas a minha impressão pessoal é a de que o JT tem dado pouco espaço à literatura, até porque não existe mais o "Jornal de Sábado", suplemento cultural que veiculava o tema, de todas as formas. Foi uma grande perda. Mas ainda há gente sensível no JT; se o espaço não é maior, então, provavelmente é que não há outra opção. Papel é pago em dólar.

H. e T.: Qual é o papel das crônicas nesse elo entre literatura e jornalismo?

Fernando: No meu entender, crônica, sendo literatura, é prima distante da literatura de ficção, meu interesse maior. Não sou um bom leitor de crônicas. Gostava muito de alguns, antigos, como Rubem Braga. Ou Carlinhos de Oliveira. Claro, sem falar do meu mestre amado, Nelson Rodrigues. Hoje leio Jabor, sem rotina, e um ou outro Veríssimo. Não saberia dizer o que mais leva à leitura de ficção: se crônica ou reportagem policial bem feita.

H. e T.: Você já atuou em várias áreas da comunicação. Como você lida com as diferenças de linguagem?

Fernando: Pra mim sempre foi um jogo divertido. Olha, eu entrei nessa história de jornalismo vindo de longe, dos treze anos de idade, quando comecei a escrever. Eram poemas, contos curtíssimos, até crônicas. A primeira história com mais de duas laudas que escrevi foi aos dezessete anos e ela acabou publicada no meu livro de estréia, "Leonora Premiada", que está esgotado há séculos.
Antes de entrar no jornalismo, fui redator de publicidade. Escrevi textos para vender automóveis e geladeiras.
Em 1989, após uma carreira de jornalista, sobretudo de repórter, consolidada, fui contratado pela Fiat italiana para organizar a comunicação do grupo no Brasil. Logo que entrei na empresa, fui levado a uma feira de automóveis na Itália onde meus novos chefes me mostraram de que forma "comunicavam" cada marca: para carros marca Fiat, uma linguagem mais popular; para Alfa Romeo, linguagem adulta, pós moderna, mas sem grandes sofisticações; Lancia, linguagem adulta sofisticada, e por aí ia. O conceito não era novidade, afinal eu havia feito iniciação na publicidade, mas a forma me parecia próxima do gênio. Aquilo me divertiu e me excitou muito, na época. De qualquer maneira, meu interesse maior não era o uso estanque de cada linguagem, mas das possibilidades de cambiar, de experimentar, de misturá-las, ou de usar atributos de umas para aperfeiçoar pontualmente outras, essas coisas. É claro que numa empresa essas experiências seriam bastante limitadas, por definição, mas o exercício intelectual me abriu muito a cabeça. Nesse negócio de criação, você não pode ter preconceito. Como em negócio nenhum. Tem escritor que não pode nem ouvir falar de comunicação de empresa. Assim como tem jornalista que odeia assessoria de imprensa. O barco é o mesmo, pô. Trabalhando com publicidade, com jornalismo empresarial, estratégia de comunicação e assessoria de imprensa, é claro que mudei o jeito de escrever, de me comunicar, de dizer coisas. Em apresentações, artigos, ou em histórias de ficção. É isso: minha vivência profissional diz muito da minha oferta literária. Sempre experimentei, procurei inovar, ousei. Fiz reportagens que são contos, sem que, em momento algum, eu tenha mudado uma frase de um entrevistado para "melhorar" o texto, como alguns repórteres faziam (hoje nem isso fazem). O fim do cinema no interior de São Paulo, matéria que escrevi para o JT, é um conto. Linguagem literária, construção típica de ficção, e todos os personagens reais. Claro que meu jeito de ver o mundo dava o tom. Lembro-me que, ao descrever o prédio estropiado do velho cinema ¿morto¿, eu usava a expressão "cimento-ectoplasma". Os leitores gostavam muito desse jeito de fazer jornal. Escreviam muitas cartas apoiando, ou o trabalho em si ou o atrevimento de fazê-lo. Em plena ditadura Médici, eu trouxe de Portugal os restos mortais de D. Pedro I, numa viagem de doze dias em um transatlântico luxuoso (por que não em doze horas de avião?). Contei a história por meio de um diário de bordo de texto muito irônico, onde relatava o dolce far niente enlutado da luso-brasilidade presente. Quase fui preso, mas valeu.

H. e T.: A experiência acumulada nas diferentes áreas contribui de algum modo com a escrita literária?

Fernando: Durante anos vivi com uma grande dúvida: não teria sido melhor ter permanecido na minha cidade, onde, a partir dos dezessete anos, consegui um bom emprego público, e ter-me dedicado unicamente à literatura? Imaginava que, assim teria tido tempo para me transformar em um erudito, quem sabe um desses intelectuais de citação.
Em vez disso, rompi com o ninho e parti para a aventura, largando até meu curso de Psicologia no terceiro ano. Como fui obrigado a ganhar a vida, li menos do que gostaria, estudei menos, não tive tempo de comparecer àquele seminário sobre semiótica.
Hoje não tenho dúvidas: se tivesse ficado no meu cantinho, é claro que não perderia o dom de escrever, mas... sobre o quê?
Hoje eu escrevo a minha vida, que sempre foi muito rica, movimentada, excitante, e não poderia ter havido um curso melhor de humanidades do que conviver com gente, de toda cor e cheiro, de línguas diferentes, e de ter-me misturado com tantos santos, crápulas e pulhas.
Enfim, eu escrevo a experiência acumulada.

H. e T.: Você já escreveu desde obras infantis até romances dentre as suas trinta e duas obras, tendo portanto vasta experiência literária. Há algum tipo de texto mais fácil de ser feito? Por quê?

Fernando: Posso inverter a pergunta? O texto mais difícil que escrevi na vida foi o do livro infantil "Um gordo feliz", da Editora Moderna. Entrar no universo infantil e interagir com seus personagens foi um desafio bastante complexo.
Tentava cavacar a memória da convivência com meus filhos, as lembranças da minha própria infância, comecei a observar crianças... deu um trabalho do cão! O resultado, a editora gostou. Mas não sei se escreveria outro, não.

H. e T.: Você está no jornalismo desde a década de sessenta. Como você vê o jornalismo na televisão?

Fernando: Foi o que mais evoluiu. Porque a tevê veio enriquecendo ao longo de todo esse tempo, dos anos sessenta pra cá. Até eu, que não tenho jeito pra coisa, andei fazendo tele-reportagem. Em 1983. Precisava pagar as prestações de um apartamento, e aí fiz seis meses de free-lancer pro Fantástico, da Globo.
Por que o jornalismo de tevê evoluiu? A grana é essencial ao bom jornalismo. O jornalismo escrito (também ao longo desse tempo), ao contrário da tevê, foi ficando magrinho, fraquinho, por falta absoluta de grana. A crise do setor é imensa, muito maior do que as pessoas imaginam. É tão grande que acho até possível acontecer, brevemente, um renascimento, a partir de investimentos novos. Estrangeiros.

H. e T.: Você acredita que a televisão roubou espaço da literatura nos jornais?

Fernando: Quem começou a roubar o espaço, não diretamente da literatura, mas da cultura, nos meios de comunicação, foi a ditadura militar, a partir dos anos setenta, quando resolveu abrir faculdades e universidades "fáceis", por todo o país, massificando o ensino e apregoando que fomentava o progresso. Acabou a ditadura mas nada mudou, profundamente, nessa política. Aliás, mudou, sim. O discurso. Todo mundo hoje fala mal da massificação do ensino e ela, massificação, não cede um milímetro do terreno conquistado. É claro: há interesses, cartórios formados, muito dinheiro rolando. Há décadas que não preparamos adequadamente nossos jovens. Não são eles, hoje, que preferem a idiotia da televisão. Eles não foram apresentados, na escola, às outras possibilidades. O que é que um estudante comum, no Brasil de hoje, fica conhecendo de literatura?

H. e T.: Guerra de Guerrilhas no Brasil é uma obra de jornalismo investigativo no período da ditadura. Ela só pode ser editada em 1978, já no fim do regime. Como você vê a questão da censura no jornalismo, escondendo fatos como a Guerrilha do Araguaia?

Fernando: A censura acabou, acreditem. Hoje todo mundo escreve o que quer. A reportagem, de 1978, e o livro, do ano seguinte, ajudaram um pouco a arrombar a porta da censura. Mas hoje não há espaço nem mesmo para a auto-censura, porque se você não publica, seus concorrentes põem na primeira página. E faturam em cima da sua omissão/incompetência.

H. e T.: E na literatura, como você enxerga a atuação dos ditadores? Quais as conseqüências?

Fernando: Ditadores são opostos a todo tipo de arte, de criação, de progresso. Na ditadura militar, a nossa cultura sofreu, como um todo, um terrível processo de repressão e conseqüente regressão. Eu sei que vocês são jovens e devem gostar de certas coisas que são produzidas hoje, mas a minha geração tem dificuldades. Em matéria de MPB, por exemplo, pelo menos do ponto de vista do aplauso internacional, nossa música parou nos anos sessenta - o que coincide diretamente com a repressão cultural no Brasil. Minha filha de vinte anos tem, como ídolos, Chico Buarque, Tom Jobim, Gil, Caetano. Eu fico feliz com isso, acho que ela tem bom gosto, mas me preocupa essa ausência de ídolos mais jovens.
As conseqüências da ditadura militar nas artes como um todo valeriam estudos mais aprofundados.

H. e T.: Em vários contos, você abordou a violência de forma tragicômica. Como você vê o nível de criminalidade a que chegamos hoje?

Fernando: Os meus primeiros livros, segundo algumas opiniões, eram quase insuportáveis, de tão violentos, pingavam sangue. Ou seja, o narrador estava chocado.
Com o tempo, acredito, essa visão foi-se depurando e talvez eu tenha começado a associar criminalidade com o cotidiano do Brasil, a entendê-la como "cultura". O criminoso passou a ter, primeiro, cara, depois, sentimentos. Minhas histórias, hoje, mostram não exatamente uma visão tragicômica da violência, mas uma visão mais humana (que inclui a tragicomédia) de uma sociedade onde a violência se enraizou.

H. e T.: É possível fazer um paralelo entre a violência do período militar e a atual?

Fernando: Não mesmo. Na ditadura que eu vivi, os militares encurralaram parte da elite pensante e a liderança política operária. Hoje, até os militares são atacados, em seus quartéis, por bandos de marginais armados de AR-15.
A ligação entre as duas violências pode ser a seguinte: se os militares, nos vinte anos em que dominaram o país, tivessem encontrado uma solução social, capitalista que fosse, seríamos hoje uma ilha de progresso. Mas, além de fascistas, eles foram profundamente incompetentes do ponto de vista técnico.

H. e T.: Você já trabalhou em obras infantis, inclusive uma sobre reforma agrária. Você acredita ser essa a melhor forma de passar noções de arte e política às crianças?

Fernando: É uma forma eficiente, inaugurada por Monteiro Lobato e muito bem usada pela Ática, na coleção Viagem pela Geografia, da qual faço parte. Muito simples, no conceito: você veicula um conhecimento técnico através da emoção de uma história de ficção. Ouvi vários depoimentos de jovens, hoje na faixa dos vinte anos, que passaram a entender melhor de determinados assuntos a partir desses livros paradidáticos. Para mim, essa eficiência está comprovada.

H. e T.: Você diz, em seu site, que os leitores da internet são mais "gulosos" que os leitores comuns. O que você quer dizer com isso?

Fernando: Como tudo na internet, o produto ficção é uma coisa qualquer. Você acessa, lê ou não, imprime ou não, volta, olha de novo, apaga. É virtual, é dispensável. Você, gulosamente, come sem mastigar. Ou nem cheira.
Aquele mesmo produto no papel ganha tradição, genética. A tendência é a de você, antes de comer, provar, degustar.
Dia desses, descobri porque um dos meus Pastores Alemães Brancos, este de origem canadense, misturado, há dezenas de anos, com o Lobo do Ártico, mete a pata na água antes de bebê-la. Ele repete a ancestralidade: tenta quebrar o gelo. Quando você pega um livro está repetindo seu ancestral que manuseava o papiro. É diferente de olhar luzes numa tela. Mas estamos tão globalizados que esquecemos o peso da nossa própria História, o valor da tradição. Um dia a internet terá sua História, também.

H. e T.: Quais outras diferenças você percebe entre o computador e o papel no jornalismo? E na literatura?

Fernando: Hoje não vejo como fazer literatura em computador. E eu fui um pioneiro. Talvez a missão do computador num futuro próximo seja a de produzir um livro na hora. Assim: você aperta um botão e sai do forno um exemplar de papel.

H. e T.: Num tempo de tantos avanços tecnológicos, como você vê o futuro tanto do jornalismo quanto da literatura?

Fernando: Sou mais conservador (e otimista) com o futuro da literatura. Acho que continuaremos a consumir livros de ficção e outros (como vimos consumindo peças de teatro ao longo dos séculos). Continuaremos a nos extasiar diante de uma grande e velha biblioteca, a entrar em sebos como se entra em um templo, a meter a pata na água.
No jornalismo, sinceramente, não sei o que nos espera, nem a curto prazo. O tipo de trabalho que eu fazia ¿ grande reportagem - agora passou a ser assunto de livro. Sinto também muita falta, no jornalismo atual, do analista, do intérprete. Eu não quero saber o que aconteceu, já ouvi no rádio, já vi na tevê, o fato, em si, já me encheu o saco, até. Quero que alguém me diga o que minha vida tem a ver com aquilo. É claro que tem gente competente fazendo isso em jornal e revista. Mas, cada vez menos. É uma tribo em extinção.
Por outro lado, o custo de um jornal é cada vez mais alto. E o papel, o objeto papel, raro e caro. Dependendo de árvores que são derrubadas.
Imagino que a ancestralidade do papiro sirva também para o jornal contemporâneo, mas acredito que o jornalismo passará por uma série de mini-revoluções que alterará dramaticamente sua forma final.
Talvez as coisas fiquem mais claras quando as grandes corporações de comunicação saírem do vermelho. Ou quando admitirem que jamais sairão.

(julho de 2003)


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